
“Ordenei que as letras maiúsculas fossem feitas de metal brilhante, para que o aspecto material, na falta de ideias, valorize o preço do livro (são os árabes, talvez, que trouxeram até aqui o ouro graças ao qual brilham as primeiras letras dos textos). Encomendei a pintura das outras iniciais em vermelho ou verde, para que a obra inteira tenha um brilho mais admirável, de modo que, aqueles a quem a riqueza de expressão for incapaz de seduzir, serão, ao menos seduzidos pela aparência do manuscrito.”
BAUDRI DE BOURGUEIL (1045 – 1130), abade da abadia beneditina de Saint-Pierre–de-Bourgueil, mais tarde arcebispo de Dol-de-Bretagne. Cronista, prosador e poeta.
Citado em Roger Chartier. Inscrever & apagar: cultura escrita e literatura (séculos XI-XVIII). SP: Editora UNESP, 2007, p.30-31.
Comentário :
Ao ler esse fragmento, pensei cá com meus livros: “para que o aspecto material, na falta de ideias, valorize o preço do livro” associo aos livros infantis lindos, pop ups, com páginas espelhadas e imagens deslumbrantes, facas, recortes, explosão de cores, papel couché, brilhos e pesos, capa dura, um luxo só.
Mas vigora mesmo é a fábula de Esopo:
O CÃO E A MÁSCARA
Procurando um osso para roer, um cão encontrou uma máscara: era formosíssima e de cores muito belas e animadas.
O cão farejou a máscara e reconhecendo o que era, desviou-se com desdém.
– A cabeça é realmente bonita – disse – mas não tem miolos.”
A fábula vai transcrita, assim, nuazinha, sem a moralidade final, que é translúcida, evidente, gritante.
Chocante mesmo é verificar que o poeta medieval anteviu nossos tempos e lascou uma definição tipo moralidade feicebuquiana:
“aqueles a quem a riqueza de expressão for incapaz de seduzir, serão, ao menos seduzidos pela aparência do manuscrito.”
Esses leitores-consumidores tão obcecados por ouros e brilhos, caindo nas armadilhas das aparências brilhantes, atropelando e ignorando “a riqueza da expressão”. Lendo o vazio em embalagens de ouropéis, brilhos de ouro de tolo, capas sedutoras e títulos tragicomicamente bombásticos.
Do século XI ao XXI e de volta ao XI. Em marcha à ré.