Foto em fim de tarde

O dia ainda esbanjava dourados quando ele apareceu e buscou apoio na pedra do jardim, cercada por amores perfeitos. Parecia intranquilo, a cabeça em rotação da esquerda para a direita. Da direita para a esquerda. Os olhos curiosos buscavam uma paisagem familiar, som de vozes, cheiros e talvez um horizonte próximo.

Havia guardado na memória luzes, cores e movimentos interrompidos por fios regulares e pela impossibilidade de contato. Até que, de repente, inexplicavelmente, rasgou-se uma brecha no horizonte e as asas o levaram através de aberturas e brisas para uma altitude desconhecida, superando paredes e telhados.

Ao sol, seu corpo estranhou a quentura, buscou sombras, todas longínquas. Fumaça, ruídos, movimentos ininterruptos, figuras. Um mundo todo novo, sem limites, sem clausura. Atravessava o espaço com alguma dificuldade no começo, logo ganhando flexibilidade e amplitude.

Não demorou, veio o tempo da sede, o cansaço das asas, o peso dos pés. Buscou uma árvore. Nenhum verde, nenhum galho. Buscou água, nem um rio, nenhuma fonte. Buscou apoio e encontrou a pedra.

A pedra que povoava o jardim. Lisa, quase branca, redonda, fresca, protegida pela sombra do edifício. Alto, de vidros semelhantes a águas retidas em aquários. Atrás de um deles, uma pessoa em clausura, como havia sido a sua.

Movia-se à vontade sobre a pedra e pôde admirar vagarosamente o amarelo vibrante das penas, esvoaçando na brisa, experimentando a liberdade. Renascia.

Sobressaltou-se quando sentiu próximas duas crianças, fotografando com olhos espantados os movimentos de seu bico, dos pés mantendo o apoio, do corpo hesitando entre o voo e o cansaço.

Logo materializou-se o adulto, com olhos escondidos atrás da câmera, a registrar espantos e indecisões.

Subiu. Sumiu. Refez rotas e rodeios. Deixou lá embaixo a imagem fixada numa câmera que roda de mão em mão e que espalha no ar a poesia da passagem do pássaro amarelo e fremente, lépido e livre, em direção ao horizonte.

Um comentário sobre “Foto em fim de tarde

  1. Avatar de helomam helomam

    A cor amarela sempre me evoca sentimentos de vivacidade e otimismo…e quando em contraste ao céu de anil , o pequeno mestre de voo e canção nos prova que a alegria veste a pluma! Parabens pelo texto Marta, adorei a leveza.

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