A FALTA QUE A LEITURA FAZ

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Poucas aventuras são mais instigantes do que a escrita. Veio pela nuvem um convite para participar de uma experiência compartilhada sobre leitura. Não para tratar de sua teoria, muito menos de estatísticas – às vezes decepcionantes – sobre o número decrescente de leitores no Brasil. Tampouco para falar de experiências exitosas sobre a conquista de novos leitores (as experiências decepcionantes ficam guardadas no íntimo de nossas conversas ao espelho).

É para, no reverso da história e no modo inverso do espelho, dizer com o peito opresso e os olhos prestes a marejar a falta que a leitura faz. Primeiro e veloz passo foi a consulta etimológica desta palavra tão dolorida, a falta.

Falta de comida, de escola de qualidade, de vergonha na cara, de carinho, de pessoas, de sentimentos humanos altruístas. A falta é sempre um mergulho no contundente, no preocupante, no vexaminoso. Mas vá lá: convite de boas intenções, vindo de mãos generosas e mente afiada, como a da Eliana Yunes, é irrecusável. Boto a mão na massa do texto e escondo aquilo que machuca na parte inferior da parte inferior da parte inferior do fundo do cérebro.

Até a origem da palavra falta, em sua etimologia indoeuropeia, é obscura. Mas as suas derivações trazem um conjunto de situações e naturezas que se combinam para dizer da distância daquilo que um ser humano de razoável inteligência preza. Senão vejamos esse bando de palavras em nuvem sobejamente pesada: falaz, falência, falácia, falha, falso, falecer, desfalecer, falsete, falível, falsificação. Queremos, em nosso professar, que todas elas tenham em seu formato um redundante não a precedê-las.

Nosso desejo é de total negação: não as quero em meu entorno, em meus amigos, dentro de mim.

Falta, proveniente do latim vulgar fallita é forma verbal do verbo fallere, que pode significar“enganar,faltar,falsificar,equivocar-se, escapar a algo ou passar despercebido”.De cara, afirmo sem medo de errar: falta e leitura são opostos absolutos. Sua proximidade é a negação do empenho em formar leitores, objetivo maior do trabalho intenso e denodado de muitos de nós.

Em mim, a falta da leitura teria me conduzido (neste ponto, seguro meus dedos para não escrever uma mesóclise tão repudiada quanto correta gramaticalmente!) ao Hades pessoal, ao apagamento intelectual, ao isolamento, a um estado de regressão humana naquilo que reputo de mais significativo: a capacidade de visão múltipla e crítica.

Sem leitura, viva a falsificação! viva o equívoco! viva a diminuta capacidade de perceber a vida! viva o engano e, mais ainda, viva o auto-engano!

No elogio da ignorância, projeto político há tanto tempo vigente no Brasil – e, na atualidade, convertido em dogma-, a leitura não tem lugar. Sua falta, seu desfalecimento e a falsificação do conhecimento projetam-se em sombras ululantes, em esgares sem lucidez, em falas de fundo falso.

Em antiga marchinha de carnaval de minha meninice, cantava a letra: “pode me faltar tudo na vida: arroz, feijão e pão/ mas não quero que me falte a danada da cachaça”. Quando se chega a um tempo em que até a cachaça falta, além da manteiga, do pão, pior que tudo, do amor, faltar também a leitura é acabar com o carnaval, com a música, com a alegria.

Eu precisaria renascer para poder encarar uma distopia sem leitura.

Talvez o aniversariante de setembro, este país nascido à beira de um riachinho, ouvindo um grito contendo a palavra morte, pudesse renascer para outra realidade menos degradante, mais diversa e múltipla. O riachinho poderia estar lá, mas o grito seria primal, vital, cobrando o direito a pensar. Porque neste, a leitura tem seu lugar. E não é o lugar da falência, mas o da vida, “mesmo que seja Severina.”, como acreditou um poeta que carregava em seu nome o achamento da terra até então ignota.

Marta Morais da Costa

Curitiba /PR, 14 de setembro de 2022

OBS.: Este texto integra a coletânea de crônicas editada pelo iiLer e pela Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio sob o título “A falta que faz a leitura“, em formato de livro digital, organizado por Eliana Yunes, publicado em 26 de outubro de 2022.

Theatrum vitae

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O lugar de onde olhas
as loucuras dilacerantes
nada tem de idílico;
antes ressoa o vendaval
desgovernado,
antes concreta em ais
as paixões devorantes.

Escorres em música
as vozes coléricas;
coleias em danças
o erotismo ardente,
palavras ausentes,
corpos em chamas.

Trazes ao contemplantes
a sarça em vão ardente
da liberdade agonizante.
Uivas aos abismos, ó teatro,
as dores indomáveis.

No jorro contínuo
das palavras sem eco,
revestes os rostos
com o inferno de dentro.

Nem louros, nem aplausos
recobrem teu solo trágico:
nele desaba o imperioso castigo.

A culpa corrói o protagonista
e desavém palco e público.

Retrato de uma professora 1

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Ontem o Dia dos Professores não poderia terminar melhor, nem de forma mais surpreendente e enternecedora. Há muitos dias venho lendo em conta-gotas – com o desejo mais intenso de que a leitura nunca consiga terminar o livro – a obra de Irene Vallejo, O infinito em um junco.

O poder da escrita, a beleza do tratamento do conteúdo, a paixão, que cada página revela, me fazem uma leitora morosa e amorosa.

Ontem, dia 15 de outubro, o sono não chegou antes que eu fosse premiada com duas páginas de exaltação a uma professora. Não resisti e nem quero resistir em compartilhar com vocês a lindeza do que então li.

Confesso que tenho três raros professores como Pilar Iranzo em minha memória, mas eles são pilares do que eu me tornei.

Segue o texto com meu profundo agradecimento a Irene Vallejo por esta homenagem ao trabalho de uma professora excepcional.

TECEDORAS DE HISTÓRIAS

“(…) para mim, o grego começou com voz de mulher – a voz da minha professora no colégio. Lembro-me de que, no começo, suas aulas não me impressionaram tanto. Como demoramos a reconhecer quem vai mudar nossa vida! Na época, eu era uma adolescente decidida a cobrar muito caro pela minha admiração. Esperava encontrar professores carismáticos, seguros de si, desses que- como eu tinha visto em alguns filmes – entram na sala de aula com ar rebelde, encostam a bunda na beira da mesa e começam a falar, engenhosos, brilhantes, divertidos. Externamente, Pilar Iranzo não se encaixava nessa fantasia. Altíssima e magra, ela andava curvando ligeiramente os ombros como se estivesse pedindo desculpas por ser mais alta do que todos nós. Usava uma bata branca convencional. Quando falava, suas mãos longas de pianista agitavam o ar com nervosismo. Às vezes se engasgava explicando uma lição, como se de repente as palavras fugissem em disparada da sua cabeça. Ouvia tudo com muita atenção, fazia mais perguntas do que afirmações e parecia se sentir especialmente confortável com o amparo de um sinal de interrogação.

Em pouco tempo a surpreendente Pilar rompeu as barreiras do meu ceticismo. Daqueles dois anos estudando com ela, guardei o prazer da descoberta, a viagem, a surpreendente alegria do aprendizado. Éramos um grupo tão pequeno de alunos que acabamos nos sentando todos em volta de uma mesa e formando rodinhas como se fôssemos conspiradores. Aprendíamos por contágio, por iluminação. Pilar não se entrincheirava atrás de declinações, de datas e números frios, de teorias abstratas, de aparatos conceituais. Era transparente, sem truques, sem alarde, sem pose, ela nos transmitiu sua paixão pela Grécia. Sempre nos emprestava seus livros favoritos, contava os filmes da sua juventude, as viagens que fez, os mitos em que se reconhecia. Quando falava de Antígona, ela própria era Antígona; e quando falava de Medeia, a história nos parecia mais aterrorizante do que nunca. Ao traduzi-las, sentíamos que as obras clássicas tinham sido escritas para nós. E esquecemos o medo de não entendê-las. Deixaram de ser fardos pesados, imposições. Graças a Pilar, alguns de nós anexamos um país estrangeiro ao nosso mundo interno.

Anos depois, quando eu mesma tive que enfrentar a vertigem de uma sala de aula, entendi que é preciso gostar dos alunos para expor diante deles o que você ama: para se arriscar a mostrar a um grupo de adolescentes os seus entusiasmos verdadeiros, os seus pensamentos próprios, os versos que tocam a sua emoção, sabendo que poderão debochar ou responder com cara de paisagem e uma ostensiva indiferença.

Enquanto estava na faculdade, eu costumava visitar Pilar durante suas horas de plantão, no seminário de grego. Quando se aposentou, continuamos nos encontrando num bar próximo à casa dela. Eu tinha necessidade de agradecer-lhe por sua forma tão imprudente de ensinar, confiando em todos nós. Acreditando que merecíamos saber. Partilhando conosco sua maneira íntima e misteriosa de ouvir as vozes do passado.

Conversávamos durante horas nesses encontros, viajando no tempo, em nossos assuntos, do presente à Antiguidade grega, que era o nosso elo. Mas sempre esbarrávamos num paradoxo: saber que seria terrível viver na época que tanto nos fascinava, quando as mulheres permaneciam afastadas do poder, não tinham liberdade e nunca deixavam de ser menores de idade. Pilar, que dedicara tantos anos a transmitir a herança luminosa da Grécia, sabia que naquela época ela estaria condenada a ficar na sombra. Sentia falta das escritoras perdidas e seus poemas nascidos no silêncio.”

In: Irene Vallejo. O infinito em um junco: a invenção dos livros no mundo antigo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2022. p.176-178.

Marta Morais da Costa

Apesar dos pesares, comemoremos!

Chegou mais uma data comemorativa do Dia do Professor. Em 15 de outubro de 1827 o imperador D. Pedro I criou por lei o Ensino Elementar, então conhecido como Escola de Primeiras Letras. Em 14 de outubro de 1963 o Decreto Federal nº 52 682 oficializou a data como um dia de comemoração aos profissionais, cuja atuação traz a marca de séculos.

Professores que tiveram sua identidade gravada na história foram, entre milhões,  Sócrates, Aristóteles, Quintiliano, Libânio, Santo Agostinho, Maria Montessori, John Dewey, Paulo Freire, Lourenço Filho, Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro…  Só para exemplificar uma das mais fundamentais e permanentes profissões existentes nas sociedades humanas.

 Em 2020, eram 2,5 milhão de professores no Brasil, dos quais 2 milhões e 200 mil atuavam na educação básica. No Ensino Médio quase meio milhão de professores se distribuíam entre colégios públicos e privados. Desse total, no nível médio, 32,3% não tinham formação específica para a disciplina que lecionavam: era o ano de 2017.

Nas universidades, as licenciaturas, responsáveis pela formação profissional em nível superior amargam nos dias de hoje uma baixa procura de jovens porque a carreira oferece remuneração inadequada à quantidade de trabalho e de responsabilidades que a atuação docente exige para ser exitosa.

Educação no Brasil é nos dias que correm o campo de futrica políticas, de incompetências de gestores de alto escalão, de uma guerra civil silenciosa (mas não menos violenta e daninha) entre alunos, pais e professores, além do absoluto desdém dos orçamentos e das pesquisas voltadas para aprendizagem, formação profissional, respeito e reconhecimento da sociedade.

No entanto, e contra todos os prognósticos, professores abnegados pensam no presente e no futuro de seus alunos e do país. Uma pátria mãe que deixou de ser gentil e se tornou algoz de esperanças e desapegos.

Neste 15 de outubro, depois de uma pandemia devastadora, de escolas fechadas e um sentimento de que, quando se sentiu falta das aulas, foi apenas por causa de um lugar em que as crianças e jovens ficassem supervisionados, para que o restante da família pudesse continuar atuando em outras profissões, as comemorações têm gosto amargo e risos enviesados.

No dia de hoje, passando por um dos poucos jornais sobreviventes, encontrei estampada uma pergunta  atroz: será o magistério uma profissão em extinção?

O fato de existir a pergunta – mesmo que a resposta seja um firme e sonoro não – reflete o estágio de desvalorização, de preconceito e de desinformação sobre a história humana, a história da educação, o valor da cultura e do conhecimento, a dedicação real e continuada de tantas pessoas, gentes e agentes, nas salas de aula e nos trabalhos levados para as residências em turnos mais alongados.

No exercício de mais de meio século em várias áreas da educação aprendi a respeitar e a agradecer a tantos profissionais que fizeram minha carreira e a maior e melhor parte do que sou.

Por eles e pelo que fizeram a mim é que desejo a todos os professores um dia de comemoração. Talvez comemorar o quanto ainda podem fazer pelas crianças e jovens deste país, apesar de todos os pesares.

Parabéns, professores, e que se desviem de nós todos os males!

 

Marta Morais da Costa

Ler por obrigação

As obrigações na leitura não são necessariamente repudiáveis e negativas. Ter que ler, ler obrigatoriamente um texto escolhido por outrem, obrigar-se a ler um texto de autoria de um amigo – mesmo que não seria selecionável em uma escolha voluntária – ou por exigência do trabalho podem ser ocasiões de aprendizagem, de descobertas, de questionamentos, de exercício crítico.

Uma ocasião especial respalda essa leitura obrigatória: a de compartilhar interpretações. É diferente quando cada um dos participantes de um grupo reunido para pensar a partir de textos escritos ou em múltiplas linguagens – como o cinema, o teatro, a música, os quadrinhos – lê, vê ou ouve textos diferentes. Mesmo que apresentem ao grupo sua atividade e o texto, os demais se colocam como ouvintes limitados, pois o livro em foco pode não fazer parte de seu repertório pessoal. São intérpretes de outros e diversos textos, mas não leram efetivamente o texto que está sendo trazido para o grupo.

A apresentação fica, portanto, como uma forma de publicidade individual, em que a participação, que pode até existir, se faz subordinada a uma interpretação de origem individual. São ideias trocadas sem a efetiva leitura de todos de um mesmo texto.

Há, entretanto, ocasiões em que a leitura obrigatória origina ações e palavras de liberdade interpretativa e de contribuições enriquecedoras sobre o texto e sobre seus intérpretes. Estou me referindo aos grupos de leitura, ou clubes de leitura – este, um termo atual e gourmet.

Quando ouço acusações sobre a leitura obrigatória – um hit de crítica sobre a leitura da literatura – imediatamente desfilam diante de meus olhos interiores as pessoas que integram e integraram os grupos de leitura que coordenei. Uma parte agradável das atividades é escolher solidariamente os livros a serem lidos. Estabelecida a lista, todos aderem de imediato. E trazem seus livros para as conversas que irão desvendar subentendidos, entendidos e superentendidos (aqui estou pensando em Umberto Eco e seu livro “Interpretação e superinterpretação”). Mas o acordo tácito e predominante é o da leitura solidária.

Como é gratificante quando os personagens e os autores são tratados pelos nomes próprios, como se fossem os vizinhos de porta, membros da família ou até amigos! É Paulo Honório pra cá, Clarice para o outro lado, Rubem tão próximo, Elena tão avessa a publicidades, Proust tão tímido e Raskólnikov tão perturbado…

Livros trazem o mundo e seus habitantes para morar com os leitores e ampliam casas imaginárias convenientes para receber mais e mais hóspedes. A obrigação se transforma em diversão, debate, aprendizagem. Ah, se tudo que é obrigatório na vida em sociedade pudesse viver essa transformação!

Marta Morais da Costa

Vou, voto e volto

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São sete horas da manhã. O dia está nublado. Um vento anuncia chuva e essa perspectiva me faz sentir ainda mais frio. Hoje não estou para ninguém: não quero telefone, nem whatsapp, nem televisão. O rádio vai ficar mudo. A cabeça tem apenas dois compartimentos: a vontade e a memória. Hoje é dia de votar.

Depois de ler, ouvir, assistir e refletir, montei um cardápio de números. Vou derramá-los conscienciosamente na urna, toque por toque, na sequência proposta pela máquina. Levo todos na memória que não há de falhar. Sempre fui um ás na matemática. Pena que tive de abandonar os estudos. Mas foi para ajudar em casa, tão grande era a necessidade.

Passei uma noite em claro quando me despedi da escola. Um pouco de ansiedade para começar a ganhar meu sustento e muito de tristeza porque sem escola o futuro fica mais incerto. Mas nem sempre há caminhos a escolher: às vezes a rota está previamente traçada.

Um café forte, um pãozinho dormido e a maçã para o caminho de volta. Corro para não perder o ônibus que na semana me leva para a fábrica e hoje para a escola. As ruas ainda estão sonolentas, poucas pessoas sem pressa, ônibus em meia carga, que aos poucos aumenta. Desço perto de meu destino e sou recebido por uma garoa que faz brilhar minha jaqueta. Bom augúrio para meus objetivos. Com passos apressados entro no prédio que abandonei há pouco tempo.

Meus olhos percorrem avisos que ilustram as paredes em busca da confirmação do local de votação. Em minha frente, duas cabeças já branquejadas, com dificuldade procuram sua seção. Se vocês quiserem, posso ajudar. Eles, surpresos, agradecem. Qual é o número da seção? Eles se atrapalham com o título de eleitor que está em suas mãos. Viram e reviram o papel, descobrem e dizem. Localizei: estão próximos das salas. E se encaminham, lado a lado, para cumprir um papel para o qual estão até dispensados. Meus pais darão futuramente este mesmo exemplo? A imagem deles toma o palco da memória e, por uma centelha de instante, a escola virou sua casa e a dúvida se inseriu nos olhos de seus pais.

Conferi o local da seção e tomei o rumo das escadas. Impedidas por um homem e dois cachorros, que, vestidos nas cores do partido, pareciam qualificar e exibir as preferências políticas do seu dono, que nem se importava em interromper o trânsito. Cidadania não é apenas poder votar, pensei. Exigi a passagem e subi.

Filas enormes, queixas, irritação. Mas ninguém arredou o pé. Afinal, os meios de comunicação derreteram os cérebros espectadores com mensagens de vote vote vote cidadania cidadania dia importante a festa da democracia e outros imperativos.

Em algumas seções, filas, problemas, esperas. Em outras, a fluidez da tecnologia e da destreza. O rádio e a tevê anunciam prisões, fraudes e urnas ineficientes. Parece que viver mais obstáculos melhora a eleição, dá visibilidade ao caos e divulga o mau caráter de poucos.

Mas votar é imperativo.

Respeitar o resultado serão outros quinhentos. Queixas, surpresas, temores e torcidas de futebol, é tudo. Esperança de um Brasil melhor? Sim, sempre. O difícil é o como. Nesta palavrinha – como – desliza o tempo em direção à cova. Cava-se na história um preâmbulo que jamais chega a um primeiro capítulo razoável. Como as promessas de boca cheia de acabar com o analfabetismo no Brasil.  Décadas se foram e milhões de brasileiros continuam sem ler ou leem mal. Funcional apenas, o alfabetismo vence sempre as eleições.

Entro na cabine, reconheço a urna, digito obedientemente os números da memória e, ainda aflito, teclo FIM.

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Em tempo: este texto foi escrito em 2 de outubro de 2022, quando o Brasil continuou sua trajetória para trás.

Inversos

Da abundância fluem carências;

os fios das teias se enovelam;

a gota espessa, que balança

na ponta da folha, deságua.

No cume da montanha

vige o desejo dos vales;

das correntes turbulentas,

o sonho do remanso voa.

Nas areias do deserto,

o verde viril pontifica;

de cada boca sedenta,

a fome mais irradia.

Em cada beijo volátil,

o sexo mais se atrofia;

assim a vida se vira,

em carências, opostos,

nervuras.

Sob dossel fantasmal,

a matéria em desatino

faz brotar dos lençóis

sangue, suor e gemidos.

Há no tempo que passa

pelas janelas do corpo

um corroer magistral,

embebido de alegrias,

latentes e desdobráveis,

a mostrar, entredentes,

a beleza inconstante,

que dentre as cinzas

renasce

Marta Morais da Costa

Onde antes…

Onde antes estava o verde, agora predomina a terra seca, quase areia.

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Árvores centenárias foram obrigadas a prestar vassalagem às motosserras.

A mata nativa – troncos finos e ramas debruçadas sobre o chão – jaz inerte.

O silêncio sem pássaros e as trilhas sem pisadas nem rastros.

As folhas e galhos perderam seu farfalhar, agora monturos secos e esquálidos.

Cortou-se a comunicação entre as árvores, abriu-se o horizonte em luz e vazio.

Onde antes não havia caminhos, agora são vias sem margens, travadas pelo entulho vegetal.

Por tantos anos, o arvoredo foi repouso dos olhos, umidade contra a secura do asfalto, paisagem de fotos e resguardo de degradação.

Hoje, de surpresa, a descoberta de que em alguns poucos dias, a natureza elaborada em séculos amanheceu destroçada.

O ser humano, rei das espécies, mais uma vez mostrou-se vilão, depredador, criminoso.

Contra ele, a dor da perda, a dor da crueldade alheia, a dor de descobrir-se também humano na desamparada impotência.

Lágrimas corroem a manhã ensolarada, desverdecida.

Marta Morais da Costa

A escrita utópica

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Queria escrever um conto falando de amor, com gentileza, com palavras poéticas e beijinhos doces.

Queria escrever um poema infantil, com musicalidade que ficasse impregnada na memória, com achados verbais e dialogando com os sentimentos ainda imaturos, mas já presentes na alma da criança.

Queria escrever uma crônica sobre a saudade com aquelas palavras que submergem o coração nas letras e que fazem as lágrimas verterem suaves sobre os sulcos da face.

Queria escrever um romance histórico com personagens que foram carne e ossos, frutos de suas fraquezas e coragem, mas que assumiram seu papel no momento em que a história deu uma cambalhota e mudou de rumo.

Queria escrever a biografia de cada um de meus antepassados até a quarta geração. Para tanto, eu pesquisaria em documentos familiares e na composição de meu sangue suas pequenas epopeias diárias, sua força de trabalho e a construção de um imaginário futuro utópico que as gerações seguintes não conseguiram construir. Queria descrever os detalhes mais crus e mais emocionantes do momento em que fui concebida.

Queria reconstruir em uma peça semidrama-semicomédia os percalços e as conquistas vividas por uma atriz no período da belle époque em temporadas-relâmpago por vários palcos do Brasil. Seriam certamente cenas de intensa paixão e imensas frustrações que mergulhariam minha escrita em desencontrados sentimentos de dor e de júbilo, encerrados pelo cair da cortina do esquecimento ao final do terceiro ato.

Ah, a escrita que poderia ser e nunca será! Talvez sua existência seja em mim esse embate entre o que eu gostaria de escrever e o que minha habilidade expressiva permite.

Tenho certeza de que na carta à posteridade que escrevo ao viver, eu não conseguirei ultrapassar as “mal traçadas linhas”.

Marta Morais da Costa

Juntas em dia frio

Marta Morais da Costa

Atravessam minhas velhas juntas o frio e a preguiça. Um me paralisa diante do aquecedor. A outra me paralisa diante do computador.

É quando a preguiça toma conta, que o cérebro à toa decide e exige a escrita. Toda razão aos romanos: se o ócio domina, vão-se os negócios! E tudo é só deleite, de café e de vinho. Escrever traz todo o trabalho para dentro e é como se não fosse trabalho (tripalium, voltam os romanos: aquilo que tortura).

Tem quem me diga por que você não sossega? Outro me alfineta aposentou pra quê? De novo escrevendo? Isso não vai dar certo. E rolam estigmas, desalentos, ralas invejas.

Além das juntas, a idade corrompeu os tímpanos que perderam sua acuidade e viraram paroxítonas, timpano, timpano, cada vez mais roucos e moucos, negando os graves e alisando os agudos.

Fui sendo alfabetizada e letrada ao longo da vida, mudando de escala e de intensidade. Já prevejo mais uma aprendizagem, desta vez sem palavras faladas, só nas mãos – sem canetas ou teclados – mas na dança dos sinais. Talvez para compensar as juntas duras avessas à dança, as mãos dançarão, bailarinas não previstas a realizar aquilo que o corpo exigiu de esforços, e não teve recompensa. Dancei como Ginger Rogers e Cid Charisse nos braços de Astaire em todos os filmes a que assisti. E tomei chá de cadeira em todos os bailes da vida.

Faz mal, não. Lembra o ditado: quando a vida fecha uma porta, Deus abre uma janela? Pois é: quem tem pernas e quadris imóveis, dança com as mãos. Manuletrare, diriam os romanos se falassem o estrupício de latim que penso saber.

Advertência ao possível leitor: o frio e a preguiça somam-se em uma escrita macunaímica sincrética e desacreditável. Lá no romance, o piá confessa em nuvens de ingenuidade que mentiu. Com a cara-de-pau latino-americana, tem todas as etnias e vizinhanças e sai supimpamente para continuar mentindo e arrotando grandezas.

Não sou capaz de tanto, painho Mário de Andrade. Mas tenho também meus sincretismos : a preguiça de hoje juntou em um texto sem-vergonha algumas meninas de cabelos brancos e com zoínhos revirando de gosto, a contar seus desgostos e fragilidades, bebericando um chá mais a sustância de um bolo de fubá.

Eita povinho que se queixa de barriga cheia!

Para além da janela da sala onde escrevo sobre velhezas, vejo passar pessoas que não têm tripalium, mas têm os olhos fundos de fome e de abandono.

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