Mulheres na guerra

Marta Morais da Costa

Svetlana Aleksiévitch. A guerra não tem rosto de mulher.  SP: Companhia das Letras, 2016.    390p.

Livro contundente escrito pela autora ucraniana, ganhadora do Nobel em 2015. Ela realizou mais de quinhentas entrevistas com mulheres sobreviventes da Segunda Grande Guerra, principalmente oriundas da Bielorrússia e que combateram no exército soviético em tempos do Stalin. Alistaram-se no exército, na aeronáutica e na marinha com a intenção exclusiva de lutar no front das batalhas. Estavam motivadas principalmente pela ideologia de pátria e esperançosas de uma guerra curta, almejando sempre o dia da Vitória e a entrada em Berlim. Encontraram obstáculos entre seus colegas de farda, lutaram bravamente, inúmeras delas morreram em combate. Foram aviadoras, enfermeiras, médicas, nas comunicações e como partisans, manejaram metralhadoras, dirigiram carros de combate, tornaram-se competentes no uso de metralhadoras e de artilharia aérea, comandaram equipes femininas e masculinas. Exerceram, enfim, papeis relevantes na guerra contra os alemães em terras da então União Soviética.

Seus relatos e depoimentos são  reproduzidos no livro a partir de entrevistas gravadas sobre como se militarizaram, como era a vida no front, o amor, os filhos, o sofrimento, a família. Geralmente são jovens muito novas que entraram na guerra aos dezesseis ou dezessete anos. Muito sofrimento, muitas feridas internas e externas, um povo arrasado e faminto, cenas cruéis, a perda do feminino, o preconceito (inclusive das mulheres não-soldados que as acusavam de prostituição). Cada depoimento vem com o nome real e função que exerceu durante a guerra.

A escrita de Svetlana é quantitativa e intencionalmente limitada no livro. Mas o fato de ceder a palavra a mulheres extraordinárias não apenas acentua a realidade que viveram (e pela qual muitas morreram), mas acima de tudo torna o livro assustador, dilacerante, comovente e acentua a bestialidade das guerras e a capacidade humana de heroísmo e sobrevivência.

A narrativa está organizada em blocos temáticos e desvenda uma face oculta da guerra: a participação das mulheres. A diversidade de histórias e opiniões revelam o quão dilacerantes são as memórias da guerra, o quanto as feridas da alma são mais doloridas por vezes do que os ferimentos de guerra. O passado visto sob a ótica do presente e da velhice é uma história silenciada que, por força do trabalho de Svetlana Aleksiévitch chega aos leitores de hoje. Juntamente com as notícias atuais das guerras que acreditávamos jamais acontecerem. 

São mulheres sem redes sociais fúteis. Suas redes eram de solidariedade e crença na liberdade. Humanas, marcadas pelas armas e pelas perdas, mulheres partidas, precocemente envelhecidas, vítimas de tempos sem paz.

A guerra e a poesia

ERA A ÉPOCA DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL

Um dos maiores representantes do catolicismo francês, Charles Péguy, usava metáforas marciais que cabiam como uma luva no percurso de jovens educados para a vida militar como Antônio [o filho mais novo da Princesa Isabel e de Gastão de Orleans, conde d’Eu]. “Deus me dê a batalha, os inimigos, as multidões a urrar, todos os combates de que serei capaz.” Dizia haver “uma necessidade de heroísmo que abraçava toda uma geração”, uma necessidade de “guerra militar e de glória militar, uma necessidade de sacrifício e até de martírio, e sem dúvida uma necessidade de santidade”.

Apesar das belas palavras, a guerra se revelou bem pior do que se imaginou. A França vacilou, orgulhosa do fim do conflito, mas incapaz de afrontar suas perdas: mil homens por dia. Durante o conflito, um milhão e quatrocentos mil franceses perderam a vida e um milhão retornou inválido, estropiado e desfigurado. O que iria durar meses durou quatro anos. As cicatrizes mais profundas não estavam visíveis. A guerra vista como uma nobre cruzada para restaurar valores como disciplina, honra, fé e progresso transformou-se num massacre mecânico sem precedentes. Os signos de um desespero tranquilo estavam em toda parte. Muitos fugiam das lembranças dolorosas num hedonismo frenético.

A guerra mostrou que virtudes como fidelidade e tradição não levavam mais ao sucesso., e sim ao fracasso. O pós-guerra deixou entrever o desengano com o progresso, o desespero diante de descobertas científicas transformadas em armas poderosas, a solidão diante da perda da religião e a consciência da mediocridade da vida. Os “anos loucos” foram a resposta dos sobreviventes. Em Montparnasse e Montmartre, o jazz, os cabarés, o movimento surrealista, a “dançomania” e a cocaína atraíam uma geração nova que repetia: “Nunca mais isso!”. Um narcisismo extravagante encarnado por artistas e escritores asfixiava de vez os valores das décadas anteriores.

(Fonte: Mary del Priore. Segredos de uma família imperial: a vida da Princesa Isabel, de Gastão conde d’Eu e dos príncipes D. Pedro, D. Luís e D. Antônio no exílio. Rio de Janeiro, Planta, 2024.  p.183)

Comentário

Neste tempo de guerras, um fragmento de discurso histórico, matizado pela poesia da linguagem. Poesia que se manifesta também na descrição do trágico e do cruel. Nada consegue, entretanto, esconder o horror nem as justificativas insanas. O tempo se esvai, mas os conflitos armados permanecem, mostrando o alto grau de violência, ambição e desumanidade de que os seres humanos são capazes.

Féretro



a via férrea
a vila férrea
a veia férrea
a vida férrea

o apito do trem
o aperto do trem
o preto do trem
o peito de outrem

o chiar do trem
o chefe do trem
a chave do trem
o choque do trem

ferrugem sanguínea
fuligem curvilínea
falida frenagem
ferida viagem


na via férrea,
o preto da roda
corta e ceifa
vidas sem dó.

Marta Morais da Costa

Sem ponto final

Marta Morais da Costa

Em meu dia de leituras cabem tantos textos de tantos gêneros de tantos autores e muitos assuntos. Passo do exótico ao erótico, do econômico ao espacial, do gastronômico ao policial, do esportivo ao musical, do horóscopo à política. Tropeço nas linhas retas e nos assuntos tortos. Leio os colunistas que odeio e aplaudo os que amo.

Dizem línguas venenosas que jornal de aposentado tem apenas três seções: obituário, horóscopo e palavras cruzadas. Ao considerar minha leitura, posso afirmar que estou desaposentada. Quer dizer, quase, pois há dias em que caio na armadilha dos horóscopos e dias em que o temor me precipita para as palavras cruzadas, em busca de oxigenação cerebral.  Finalidade que, por exemplo, as notícias políticas não produzem em mim.

Abrindo o linque enviado por uma amiga, que deveria dar acesso à sua crônica semanal, caí, desavisada, nas notas de falecimento referentes aos três últimos dias.

Bafejada pela vontade dos deuses, mergulhei texto adentro: nomes, idades, hospitais, endereços e velórios. Encontrei registros de falecidos sem a identificação do nome do pai. (Ah, esses homens cuja responsabilidade some num jato!). Confirmei que a morte não respeita idades, nem considera profissões e, muito menos, dá bola para sobrenomes ilustres ou embaçados.

Mas, ficcionista fiel, construí histórias singulares e redes coletivas. Reuni em espaços comuns idosos, jovens e bebês em narrativas enredadas e recheadas de simultaneidade e coincidências.

Dois idosos, com o mesmo sobrenome e em registros separados, a sugerir uma trajetória conjunta e a morte idem, quem sabe na impossibilidade de sobreviverem um ao outro depois de uma longa união. A mãe, estuprada, que morre ao dar à luz um bebê enfermiço que a acompanha na viagem ao desconhecido. Um jovem a desafiar a sucessão normal das gerações, tendo gozado loucamente seus poucos anos de vida. O pai que, acidentado, leva consigo o filho querido para uma jornada sem rumo definido. O avô, deixado na casa de repouso com a promessa de visitas periódicas, encontra quem poderia ser uma companheira derradeira, mas as debilidades comuns e as desiguais levaram os dois, em dias subsequentes, para o descanso final. A mãe amorosa, o pai provedor, a mãe autoritária, o pai omisso, o filho responsável, a filha desorientada, a vítima de bala encontrada, mortes voluntárias e mortes rejeitadas: a vasta galeria literária de personagens e biografias que povoam a mente do leitor quando o gatilho da ficção é acionado. Estavam lá a literatura e a vida em espelho multiplicador.

Não li a crônica, retornei da visita ao reino de Plutão envolvida por uma atmosfera de histórias e a imaginar segredos que cada um daqueles nomes levou consigo.

Fechei o jornal com um clique lento e a convicção de que um dia meu nome estará em uma página de um jornal que algum leitor desavisado lerá antes de, ele também, ter a certeza que seu nome estará lá um dia e que outro leitor desavisado lerá e terá confirmado que em um futuro qualquer seu nome…

Foto em fim de tarde

O dia ainda esbanjava dourados quando ele apareceu e buscou apoio na pedra do jardim, cercada por amores perfeitos. Parecia intranquilo, a cabeça em rotação da esquerda para a direita. Da direita para a esquerda. Os olhos curiosos buscavam uma paisagem familiar, som de vozes, cheiros e talvez um horizonte próximo.

Havia guardado na memória luzes, cores e movimentos interrompidos por fios regulares e pela impossibilidade de contato. Até que, de repente, inexplicavelmente, rasgou-se uma brecha no horizonte e as asas o levaram através de aberturas e brisas para uma altitude desconhecida, superando paredes e telhados.

Ao sol, seu corpo estranhou a quentura, buscou sombras, todas longínquas. Fumaça, ruídos, movimentos ininterruptos, figuras. Um mundo todo novo, sem limites, sem clausura. Atravessava o espaço com alguma dificuldade no começo, logo ganhando flexibilidade e amplitude.

Não demorou, veio o tempo da sede, o cansaço das asas, o peso dos pés. Buscou uma árvore. Nenhum verde, nenhum galho. Buscou água, nem um rio, nenhuma fonte. Buscou apoio e encontrou a pedra.

A pedra que povoava o jardim. Lisa, quase branca, redonda, fresca, protegida pela sombra do edifício. Alto, de vidros semelhantes a águas retidas em aquários. Atrás de um deles, uma pessoa em clausura, como havia sido a sua.

Movia-se à vontade sobre a pedra e pôde admirar vagarosamente o amarelo vibrante das penas, esvoaçando na brisa, experimentando a liberdade. Renascia.

Sobressaltou-se quando sentiu próximas duas crianças, fotografando com olhos espantados os movimentos de seu bico, dos pés mantendo o apoio, do corpo hesitando entre o voo e o cansaço.

Logo materializou-se o adulto, com olhos escondidos atrás da câmera, a registrar espantos e indecisões.

Subiu. Sumiu. Refez rotas e rodeios. Deixou lá embaixo a imagem fixada numa câmera que roda de mão em mão e que espalha no ar a poesia da passagem do pássaro amarelo e fremente, lépido e livre, em direção ao horizonte.

Diálogos I

Foto por Cup of Couple em Pexels.com

Entrevista de Paulo Freire a Elias Fajardo em 1985.


EF- Fale um pouco de sua infância, do Recife em que nasceu.

PF – Há algum tempo, com profunda emoção, visitei a casa onde nasci. Pisei o chão em que me pus de pé, andei, corri, falei e aprendi a ler. O mesmo mundo que foi o meu primeiro mundo que se deu à minha compreensão pela leitura que dele fui fazendo. Lá, reencontrei algumas árvores da minha infância. Reconheci-as sem dificuldade. Quase abracei os grossos troncos, que eram os mesmos jovens troncos da minha infância. , Então uma saudade que costumo chamar de mansa ou de bem comportada, saindo do chão, das árvores, da casa, me envolveu cuidadosamente.

Na casa mediana em que nasci, no Recife, à sombra das árvores eu brincava e, em seus galhos mais dóceis à minha altura, eu me experimentava em riscos menores que me preparavam para riscos e aventuras maiores. A velha casa, seus quartos, seu corredor, seu sótão, seu terraço, o sítio de avencas de minha mãe, o quintal amplo, tudo isso foi meu primeiro mundo. Nele engatinhei, balbuciei, me pus de pé, andei, falei.

Os textos, as palavras, as letras daquele contexto se encarnavam no canto dos pássaros – o do sanhaçu, o do olha-pro-caminho-quem-vem, o do bem-te-vi, o do sabiá; na dança das copas das árvores sopradas por fortes ventanias que anunciavam tempestades, trovões, relâmpagos; nas águas da chuva brincando de geografia: inventando lagos, ilhas, rios, riachos. Os textos, as palavras e as letras daquele contexto se encarnavam também no assobio do vento, nas nuvens do céu, nas suas cores, nos seus movimentos, na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores – das rosas e jasmins -, no corpo das árvores, na casca dos frutos, na tonalidade diferente de cores de um mesmo fruto em momentos distintos: o verde da manga-espada verde, o verde da manga-espada inchada, o amarelo esverdeado da mesma manga amadurecendo, as pintas negras da manga mais além de madura, na relação entre estas cores, no desenvolvimento e no seu gosto. Foi nesse tempo, possivelmente, que eu, fazendo e vendo fazer, aprendi a significação da ação de amolengar.

Daquele contexto – o do meu mundo imediato – fazia arte, por outro lado, o universo da linguagem dos mais velhos, expressando as suas crenças, os seus gostos, os seus receios, os seus valores. Tudo isso ligado a contextos mais amplos que o do meu mundo imediato e de cuja existência eu não podia sequer suspeitar.

Até os meus sete anos, talvez, o bairro do Recife onde nasci era iluminado por lampiões que se perfilavam, com certa dignidade, pelas ruas. Eram lampiões elegantes que, aos cair da tarde, se “davam” à vara mágica de seus acendedores. Eu costumava acompanhar do portão de minha casa, de longe, a figura magra do acendedor de lampiões de minha rua, que vinha vindo, andar ritmado, vara iluminadora no ombro, de lampião a lampião, dando luz à rua. Uma luz precária, mais precária do que a que tínhamos dentro de casa. Uma luz muito mais tomada pelas sombras do que iluminadora delas. (p.18-19)

Me lembro das notes em que, envolvido no meu próprio medo, esperava que o tempo passasse, que a noite se fosse, que a madrugada semiclareada viesse chegando, trazendo com ela o canto dos passarinhos “amanhecedores”.

EF- O senhor é tão poético. Que ligação tem com a poesia?

PF- Adoro a poesia, gostaria de ser poeta, enquanto capaz de fazer o tratamento poético das palavras. Mas eu me acho poeta enquanto sou capaz apenas de sentir o pingo da neve, a flor abrindo; mas não sou possivelmente poeta enquanto capaz de dar forma ao sentido e ao sentimento do mundo.

EF- Eu discordo um pouco, porque uma pessoa que diz coisas como “no conhecer não se pode desprezar o adivinhar” é também um poeta.

PF – Inclusive, a poesia adivinha, não é?

FAJARDO, Elias. Paulo Freire: “Conhecer não é adivinhar, mas tem a ver com adivinhação.”

Revista do Brasil, RJ, ano2, nº 4, 1985, p.12-19.

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INFÂNCIA

          Carlos Drummond de Andrade

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
Lia a história de Robinson Crusóe,
Comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
A ninar nos longes da senzala -- e nunca se esqueceu
Chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
Café gostoso
Café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo
Olhando pra mim:
-- Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava
No mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
Era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

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MUNDO PEQUENO I

                            Manoel de Barros

O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco,
os besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa.
Ele me rã.
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os ocasos.

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MESTRES

              Marta Morais da Costa

Minhas árvores da infância em outros verdes
mais enverdecem nos versos dos mestres.

Minhas águas da infância, em ouro e peixes,
mais clareiam nos versos dos mestres.

Meus pássaros da infância em cores e voos
nos versos dos mestres melhor entoam.

A sequestrada casa da minha infância
libera-se nas imagens dessa poesia.



			
					

Sobre escrita e leitura #2

Marta Morais da Costa

“Um sábio disse um dia que o amor de uma mulher era como uma tabuleta envernizada de superfície virgem, na qual elas têm o hábito de depositar a memória. Apagando com um pouco de saliva o primeiro nome que escrevem, aquele que vem em seguida é escrito por cima. Semelhante a uma tabuleta branca é a alma das mulheres. Se hoje és tu que estás escrito, amanhã elas te apagarão. Não é preciso mais que um dia, meu senhor, pois o amor delas é feito de verniz, para que possam colocar Pedro lá onde estava escrito Juan.”

(Fala de Beltrão, personagem de “O Príncipe perfeito”, comédia de Lope de Vega (1562-1635)).

Em seus 73 anos de existência, Lope de Vega escreveu aproximadamente 2 000 peças de teatro, segundo seus biógrafos. Contemporâneo de Shakespeare (1564-1616) superou o dramaturgo inglês em idade, produção dramatúrgica e filhos. Lope de Vega era mulherengo , segundo os biógrafos, envolveu-se em alguns escândalos e procriou 15 filhos. Nessa matemática exagerada, o espanhol é um dos mais significativos autores teatrais da história ocidental. É dele uma as mais importantes peças de nossa cultura teatral: “La vida es sueño” (“A vida é sonho”), em que brilhantemente registrou para a posteridade uma das metáforas mais justas e belas a respeito da vida, ela é o sonho que o tempo alimenta e interrompe.

Deixando de lado esses dados biográficos, rápidos e lacunares, faço um pequeno comentário a respeito dessa fala de Beltrão, dirigida ao príncipe em tom de ensinamento: as mulheres são volúveis, tal qual a “piuma al vento”. Essa qualidade atravessou os séculos e continua a transitar por eles.

A relação é estabelecida pelo personagem no pentágono fechado e definitivo mulher-amor- tabuleta-escrita-memória. Definitivo ao menos para Beltrão. Escrever o nome do amado e apagar com a saliva tem um quê sensual e ao mesmo tempo mortal: da boca sai o esquecimento, o apagamento, na atualidade diz-se cancelamento. De onde saem a fala e os beijos, que dão vida ao amor, também é produzida a substância que o cancela. Do corpo de que partem as flechas de Eros também emanam as substâncias de Thanatos a matar o amor.

Mas a saliva é também curativa: permite que um novo amor possa nascer e ser registrado: Pedro substitui Juan na dança do afeto.

Mais grave, no entanto, é considerar que o escrito contém a memória da mulher, que se apaga voluvelmente. Uma mulher sem memória está fadada a perder sua história. Ou a permitir que quem a descreve a considere volúvel como “a pluma que o vento vai levando pelo ar”. Ai, os versos lindos da canção “Felicidade”, de Vinícius de Moraes, em “Orfeu negro”, um filme com Brasil e brasileiros, cantado e falado em português, ganhador do Oscar de filme estrangeiro em 1960, que foi contabilizado para o cinema francês, cujo diretor e cujos patrocinadores fizeram jus em levar para a França a estatueta dourada.

A mulher e a felicidade, plumas ao vento, talvez tenham adquirido novos contornos e outras qualidades ao longo da História. Mas a ideologia que representam não se mantém entre os limites dos séculos. E na interminável guerra dos sexos, não é raro encontrarmos beltrões a alertar outros homens sobre a facilidade com que as mulheres trocam pedros e joões.

Na dança das cadeiras amorosas, talvez hoje haja tabuletas, escritas e posteriormente apagadas com saliva, nas mãos de homens e mulheres de pouca fé e fidelidade.

Por isso, que o dia 8 de março bem próximo permita registros menos indeléveis nas tabuletas que constroem a história e a memória dos amores.

Alá-lá-ô

Marta Morais da Costa

“Alá-lá-ô, ô-ô-ô, ô-ô-ô / Mas que calor, ô-ô-ô, ô-ô-ô “

(marchinha de Haroldo Lobo e Nássara – 1941)

Dirão alguns: esta é de meu tempo!

Outros retrucarão: cara, não sabia que era tão antiga!

Outros, melancólicos: baile de Carnaval ou na rua sem essa marchinha não tem valor!

Alguns, surpresos: mas essa letra é muito atual!

Esclareço: não sei se pensavam na importância dos estados árabes ou na crise climática.

Só sei que cantei e pulei, animadíssima, em salões de velhos carnavais. Sem pensar em religião, petróleo ou desmatamento. Valia apenas o ritmo e o saracoteio. De vez em quando um siricotico: pisão no pé, confete nos olhos e na boca, cabelos entremeados de serpentinas, abuso alcoólico trazendo odores, gestos e olhares de alguns bebuns que, surpreendentemente, sumiam do salão, acompanhados por diretores e, ao lado, a turma do deixa-disso apaziguando pais, maridos e namorados.

De longe,  pais e tias a cuidar dos seus (principalmente das suas); afinal, Carnaval é para espíritos fortes e dispostos. Cansaço, nem pensar. Afinal havia o tempo de descanso dos músicos e a corrida para a toalete mais próxima. Na volta, goles de guaraná ou coca-cola: álcool nem pensar. Afinal, a alegria tinha um espaço natural e o esquecimento de problemas era do código comportamental aceito sem reclamação. Melhor ainda: festejar era parte das férias em estágio de conclusão.

O ano letivo começava em março. As férias eram de três meses corridos (com mais dias ou menos dias, dependendo do cidadão: estudou e passou: férias a partir de novembro.; vadiou ou se perdeu nos conhecimentos, novas provas, segunda época, férias a partir de janeiro). Mas passar de ano ou reprovar e ter que repetir a série escola não impedia o Alá-lá-ô.

E no salão democrático, bons e maus estudantes formavam o cordão carnavalesco que arregimentava pessoas, trazia as tias, insistia com os pais, esvaziava as mesas, cooptava os presentes e fazia serpentear os movimentos ao som das marchinhas pelos poucos espaços vazios de uma festa quase-familiar, onde Baco era amordaçado por uma liberação controlada e bem-posta.

Os pecados do lado de baixo do Equador eram tão comportados que o padre na confissão de quarta-feira de cinzas não passava penitências com mais de cinco Ave-Marias: quase todos os supostos bacantes pareciam fantasiados de anjos, meio decaídos, mas revitalizados pelos Alá-lá-ôs, “Saca-rolha”, “Ó Abre Alas”, “A canoa virou”, “Mamãe eu quero”, “Aurora”, “Jardineira”, “Pierrô apaixonado”, “Chiquita Bacana”. Letras que, cantadas, pareciam ser só ritmo e folia, sem sentido, nem correspondência com a realidade. Discurso politicamente correto? Censura moral? Que nada! Toca pular, fazer guerra de confetes, puxar cordão, gastar energias!

Afinal, na quarta-feira “sempre desce o pano” e as cinzas, marcando a testa em cruzes improvisadas, ajudavam a enterrar o Carnaval daquele ano, para que ressuscitasse em velhas e novas marchinhas no ano seguinte.

Só vim a conhecer o outro lado do Carnaval quando li Manuel Bandeira: “Epílogo”.

Eu quis um dia, como Schumann, compor
Um carnaval todo subjetivo:
Um carnaval em que o só motivo
Fosse o meu próprio ser interior…

Quando o acabei — a diferença que havia!
O de Schumann é um poema cheio de amor,
E de frescura, e de mocidade…
E o meu tinha a morta mortacor
Da senilidade e da amargura…
— O meu carnaval sem nenhuma alegria!…

Ah, mas esta é outra história!

Neste sábado de Carnaval, quero mais é cair em uma alegria efêmera, virar rainha de copas, sair de porta-estandarte, cantar as antigas modinhas e acreditar que, em algum tempo, o Carnaval foi apenas a passagem das férias para os estudos, da vida despreocupada da infância e da adolescência para um tempo de trabalho e de criação  que até hoje vive em mim.

Alá-lá-ô-ôôôôô.

Sobre escrita e leitura #1

“Ordenei que as letras maiúsculas fossem feitas de metal brilhante, para que o aspecto material, na falta de ideias, valorize o preço do livro (são os árabes, talvez, que trouxeram até aqui o ouro graças ao qual brilham as primeiras letras dos textos). Encomendei a pintura das outras iniciais em vermelho ou verde, para que a obra inteira tenha um brilho mais admirável, de modo que, aqueles a quem a riqueza de expressão for incapaz de seduzir, serão, ao menos seduzidos pela aparência do manuscrito.”

BAUDRI DE BOURGUEIL (1045 – 1130), abade da abadia beneditina de Saint-Pierre–de-Bourgueil, mais tarde arcebispo de Dol-de-Bretagne. Cronista, prosador e poeta.

Citado em Roger Chartier. Inscrever & apagar: cultura escrita e literatura (séculos XI-XVIII). SP: Editora UNESP, 2007, p.30-31.

Comentário :

Ao ler esse fragmento, pensei cá com meus livros: “para que o aspecto material, na falta de ideias, valorize o preço do livro” associo aos livros infantis lindos, pop ups, com páginas espelhadas e imagens deslumbrantes, facas, recortes, explosão de cores, papel couché, brilhos e pesos, capa dura, um luxo só.

Mas vigora mesmo é a fábula de Esopo:

O CÃO E A MÁSCARA

Procurando um osso para roer, um cão encontrou uma máscara: era formosíssima e de cores muito belas e animadas.

O cão farejou a máscara e reconhecendo o que era, desviou-se com desdém.

– A cabeça é realmente bonita – disse – mas não tem miolos.”

A fábula vai transcrita, assim, nuazinha, sem a moralidade final, que é translúcida, evidente, gritante.

Chocante mesmo é verificar que o poeta medieval anteviu nossos tempos e lascou uma definição tipo moralidade feicebuquiana:

“aqueles a quem a riqueza de expressão for incapaz de seduzir, serão, ao menos seduzidos pela aparência do manuscrito.”

Esses leitores-consumidores tão obcecados por ouros e brilhos, caindo nas armadilhas das aparências brilhantes, atropelando e ignorando “a riqueza da expressão”. Lendo o vazio em embalagens de ouropéis, brilhos de ouro de tolo, capas sedutoras e títulos tragicomicamente bombásticos.

Do século XI ao XXI e de volta ao XI. Em marcha à ré.

Sobre literatura – #1

“O valor da literatura reside justamente nessa experiência que autores e leitores vivenciam ao manusear a linguagem literária. Por ser única, pessoal e intransferível, por ser uma experiência singular de linguagem, por ser uma construção simbólica feita somente de palavras, a experiência literária é extremamente libertária e humanizadora. Por meio dela, como já anunciava Roland Barthes em sua Aula (1980), podemos assumir o lugar do outro sem deixar de ser nós mesmos, rompemos com os limites do tempo e do espaço da realidade histórica a que estamos irremediavelmente presos, significamos e ressignificamos nossa vida e nosso mundo em outras tantas vidas e mundos. Em suma, pela relação intensa com a linguagem enquanto linguagem e construção simbólica do mundo e de nós mesmos, , que é o fundamento da experiência literária, nos libertamos das constrições e dos ordenamentos que nos são dados socialmente e nos fazemos verdadeiramente humanos. Por ser linguagem simbólica, palavra imaginada, a literatura guarda em si todos os sonhos do homem e a experiência literária nos revela que não há sujeito ou mundo impossível de ser sonhado (Paulino e Cosson, 2009).” (p.179)

COSSON, Rildo. Paradigmas do ensino da literatura. SP: Contexto, 2020.

Breve comentário

Não é um belo fragmento que eleva e seduz? “Não há sujeito ou mundo impossível de ser sonhado”? Então, por quais bateladas de água os leitores andam sumindo, as livrarias vendendo canetas cadernos e quejandos, porque os livros empacam e estocam-se nas prateleiras e a literatura não atrai baratas nem traças nem moscas? Para convencer uma criança digital e um adulto mais indigitado ainda, só com filmes muita saliva e olhinhos revirados de prazer carmenmirandado pra dizer: leia, você precisa pensar, largar mão de ser pau-mandado abrir os olhos pro mundo e o cérebro para pensamentos de segundo grau. Nem assim: literatura é Oscar de inutensílio garantido e coisa pra babaca.

Hoje estou incrédula. Perdão aos meus amigos e mestres. Mas não largo a mão de vocês por razões de sobrevivência e um tanto de teimosia: vamos de sonhos e poesia que atrás veio gente e tem muita na nossa frente.

Foto por Leah Newhouse em Pexels.com