No sítio do Picapau Amarelo, os vingadores perseguem o menino marrom por causa do avesso da pele

Marta Morais da Costa

A literatura é avassaladora. Em sua natureza e na produtividade. A força invasiva no pensamento do leitor – para a mudança e para a permanência – da natureza própria da literatura e a reprodução incontrolável de escritos, livros e formas de transmissão. São aspectos que recebem a atenção dos estudiosos e escritores, e, acima de tudo, se tornam objeto de discursos extremos e delirantes.

 

 

Freio de mão e pé no chão pode ser uma receita para dias de turbulência, como os recentes. Não se trata de jogar na vala geral da polarização: a causa é mais complexa.

A polarização é resultado e pode dispensar o conhecimento. Entra em ação a “ignorância artificial”, assunto tratado com inteligência e alta qualidade textual por Eugênio Bucci em sua recente coluna no jornal “O Estado de São Paulo” (https://www.estadao.com.br/opiniao/eugenio-bucci/sobre-a-ignorancia-artificial/), essa rede de ideias pré-formatadas e empurradas goela abaixo de gentes crédulas, de boa e má-fé.

Faz parte do cardápio dessa ignorância artificial os recentes casos de censura de livros, acentuadamente os de literatura infantil. O perigo de atribuir a personagens (afinal, seres imaginados em um mundo de invenção) que não são o vizinho da direita, o irmão do dono da casa da esquerda, o pedestre que atravessa a rua, a mulher no banco de espera do ônibus ou a colega de trabalho.

As narrativas passaram a ser consideradas manuais de comportamento, menus de atitudes, publicidade de valores morais e por aí afora. Desenquadram-se de uma cronologia histórica, viram textos escritos neste momento e com personagens atuais.

 

Nunca objetos de compartilhamento de opiniões diferentes, ouvidas e respeitadas de hoje e do tempo de seu autor. A opinião já nasce vestida em armadura e armada até os dentes. Ninguém contextualiza na história da literatura. A narrativa ou o poema se transforma, na interpretação falsamente crítica e intencionalmente tendenciosa, em uma bula de remédio para as necessidades cotidianas dos leitores, como resolver conflitos familiares, exemplificar o que é bulling, disfarçar a depressão, consolar da morte do animal de estimação. Literatura é antes de tudo arte e invenção. Textos voltados à didática da vida escanteiam a literatura e privilegiam sua utilidade prática.

A violência da personagem, que, na narrativa infantil, via de regra, termina por ser condenada e penalizada, passa a ser entendida como uma lição comportamental, ou seja, uma ordem: faça assim ou imite a personagem, leitor ingênuo!

Quem faz uma reflexão sobre a sociedade violenta e de valores hipócritas? Pronto, está declarada guerra ao texto provocador. Melhor censurar a literatura (essa libertina que deseduca) do que trabalhar em prol da compreensão do problema em suas dimensões diversificadas e na adoção de atitudes que o solucionem.

Falta a esses censores deseducados um enfrentamento de seus medos que a literatura vem desvendar. Quanto do medo adulto se manifesta nos pedidos de retirada de livros de literatura das estantes (tão raras e pobres) das bibliotecas escolares? Quanto de má pedagogia existe que silencia sobre a censura ou esquece seu papel de favorecer a compreensão da história e da vida, latente no texto censurado? Quanto de jornalismo sensacionalista está nas manchetes que anunciam mais um livro censurado, sem que trate com a devida inteligência a natureza do texto literário e as questões de interpretação? Lembrar que a interpretação resulta sempre de um histórico de leitura e não de ideias/valores projetados desrespeitosamente sobre o texto.

 Reconheço como é meritória a preocupação dos pais com a formação psíquica e emocional de seus filhos. Reconheço como a escolha de livros é, por vezes, resultado de gentes que não têm formação adequada para realizá-la. Reconheço que existem equívocos na mediação da leitura literária (por presunção, prepotência ou desconhecimento dos mediadores: exceções à parte). Reconheço que há muito livro ruim circulando como se fosse literatura de qualidade humana e estética. Reconheço que existem erros no tratamento e na adequação de livros a seus leitores mirins. Mas me pergunto: o que fazem os atores/agentes desses equívocos? Dialogam, trocam argumentos, propõem soluções? Não. É mais fácil censurar. Propostas de cadeia para o livro e não de livros em cadeia para desenvolver o pensamento e a interlocução!

Mas não são apenas os leitores que desaparecem a cada pesquisa sobre o status da leitura no Brasil. Somem leitores qualificados e aparecem os profetas do caos. Saem a beleza e a força da literatura e passam a vigorar os estatutos dos medos e o obscurantismo.

Proibir atiça o desejo. Talvez seja uma boa propaganda para leitores curiosos.

Enfim, não é apenas a educação institucionalizada que vai mal…

Desapegos

Marta Morais da Costa

A palavra apego, embora de origem latina pela forma verbal adpegare, tem sido uma constante no léxico do idioma falado no Brasil. Não por sua versão positiva: apego como sentimento de afeição, de simpatia, de dedicação e estima. Mas especialmente por sua forma negativa, dita e escrita em forma afirmativa, quando não imperativa: desapego e desapegue.

Em sua versão recente é uma palavra tangencial de livre-se, livramento, fique mais leve, passe adiante. E aí os objetos diretos da frase ou do complemento nominal (desapego de…) podem estar contidos nos mais diversos campos semânticos: coisas, pessoas, sentimentos, ideias.

Desapegue de suas roupas sem uso, desapegue dos sentimentos frustrantes, desapegue de pessoas pessimistas ou fofoqueiras e até o extravagante e abusado desapegue dos livros que já leu, que ainda não leu, que jamais lerá.

É um tal de distribuir, dividir, compartilhar, livrar-se do que foi atado e que compõe a base sólida e segura de sua vida, para lançar-se a novas bases a serem, por sua vez e futuramente, desapegadas.

Para algumas pessoas desapegar-se é apenas trocar os móveis e tapetes, livrar-se dos eletrodomésticos antiquados (sem timer nem lâmpadas led), colocar em outras mãos tudo aquilo que um dia foi uma sinalização, uma identificação e a memória pessoal.

Desapegar é um ato heroico e um grito de liberdade. Em termos. Cortar laços, representados por objetos e pessoas, não é (ou não deveria ser) uma atitude inócua, irresponsável, desestruturante. Um lançar o passado na bacia das almas, apagar as provas do vivido, esquecer os exemplos de um tempo, talvez mais feliz.

Desapegue, dizem tantos: reconheça que eram coisas e pessoas efêmeras em sua vida, trocados que a atualidade da abastança despreza e destrói. Eram fúteis, vaidades tolas, pecados a serem escondidos. Desapegue rapidamente, antes que a hesitação habite seu desejo ou sua obediência. Lance longe, encaixote e envie sem remetente, cubra, embrulhe, despache. Sem remorsos, vire as costas ao que estava e não é mais, abra asas de liberdade e voe para o novo, o diferente, o que não era e passa a conviver com você.

Assim, tendo a alma leve e o passo rápido, entre em um novo mundo de consumo e povoe sua casa, sua vida e seus afetos como um renascer. Isso tudo não deixa de ser um apelo imantado, irrecusável, embriagador.

Algo como a água de uma fonte de juventude e um eldorado existencial.

Coragem: deixe os vinis rodarem ladeira abaixo, ponha no freezer do esquecimento os presentes de casamento, as lembranças de viagens, os desenhos dos filhos-crianças, os livros que guardam pó e peso nas estantes, as imagens dos amigos da escola, da formatura emocionante, do primeiro beijo, ah, e os documentos com mais de cinco anos de emissão!

Crie um marco zero em sua caminhada, alivie seu coração dos afetos do bem, do remorso e da culpa. Ponha tudo em uma caixa bem decorada, feche com fitas e enderece para uma rua ladrilhada onde sua vida passou.

E voe mais leve e mais vazio.

 

Foto por Mauro Torres V em Pexels.com

Ela comemora cem anos.

Minha mãe está fazendo 100 anos neste 31 de maio. Mesmo que não esteja em nenhum cômodo do apartamento, mesmo que não precise de agasalhos contra o frio (ela, que sentia muito frio nos pés e nas mãos), mesmo que dispense bolos e abraços, mesmo que não esteja sorrindo aos ver os filhos reunidos e os netos a chamar vovó. Mesmo que não atenda aos telefonemas para, com dificuldade de audição, ouvir a resposta a seu rápido alô.

Essa mãe, forte para parir e criar seis filhos, hoje tem uma força sobrenatural, em outro estágio, em outra dimensão. E continua presente na história que construiu em nós e conosco. Continua a sorrir, a aconselhar, a contar suas histórias, a lamentar a hora da despedida quando ultrapassávamos a porta de saída e a se queixar da vida presente, tão confusa, tão incompreensível, tão diferente.

Sabe, mãe, somente convivi com você 77 anos desse centenário que você comemora longe de nós. Não conheci você no tempo de sua infância, meninice e juventude, mas elas vieram com suas histórias do tempo passado fechar lacunas, dar a conhecer um pouco do que você viveu.

A gente é assim mesmo: o que não vivemos também se torna nossa história pela voz dos outros.

Por isso, mãe, aquela plaquinha de comemoração de seu centenário não existe, apenas ficou como palavras em seus ouvidos e na minha intenção. Faz mal não, mãe! Este bilhete não substitui a plaquinha e as homenagens. Mas igual a elas, fala de meu agradecimento por tudo que herdei, de corpo e de caráter. E de quanto sinto sua falta.

Parabéns, mãe! Você viverá muitos e muitos anos mais enquanto vivermos: meus irmãos, seus netos e bisnetos, genros e noras e todos os amigos que você fez na vida. Eles lembram com afeto da vó Pierina, da tia Pierina e da dona Pierina: as muitas mulheres que você foi.

Ah, aí ao lado do pai (esse centenário rapaz elegante e bonito), diz para ele que ele também faz falta e que ser órfão só é bom em romance que acaba bem. Pra valer, orfandade dói, dói.

Beijos e feliz aniversário!

A infância, a ausência e a revivência.

Marta Morais da Costa

Em tempo de redes sociais, a felicidade mora em todos os tempos e lugares da vida. Um historiador do futuro ao olhar para este começo atormentado do século 21 e ao estudar suas fontes documentais visuais estará fadado a um trabalho insano, destemperado e sem conclusão. Haja fotos inumeráveis e vidas com registros de costumes e modas e poses e caras e caretas!

Poderá estudar cenários (cenográficos muitas vezes), trilhas musicais, dancinhas, ambientes, objetos e um sem número de marcas e testemunhos dos tempos de hoje. Irá se deleitar com a cínica, narcísica e patológica busca da felicidade contínua e com fios desencapados.

Terá ainda vasto material de memórias pessoais e coletivas em publicações que tangenciam o infinito. Nesta festa de exibições, quero expor minha parte no partido dos leitores compulsivos.

Passeando pela internet, cheguei a uma citação que gostaria de tomar como ponto de partida para uma rápida reflexão:

Não sou capaz de dizer que obra ou que autor inoculou em mim o vício da leitura, porque nasci entre livros, milhares deles. Meu pai tinha estantes espalhadas por várias partes da casa, inclusive na garagem.”

ALBERTO MUSSA, escritor brasileiro

Foto por Ricky Esquivel em Pexels.com

Isso é que é nascer em berço esplêndido! No paraíso dos eleitos leitores! Algo com que eu nunca sonhei, nem em minhas noites mais perfeitas e com iluminação onírica.

Não sei bem o que é uma iluminação onírica, mas gostei da combinação. Penso ser uma expressão que expande seus significados. Talvez algo contrário à escuridão dos pesadelos e suas dores implícitas. Talvez sonhos que de tão lindos vêm com iluminação de primeira, como se fosse um toque de Beto Bruel e sua genialidade com refletores, gelatinas e painéis de controle. Sonhos que podem parecer um cenário de Barbie, visitado pelo Ken dos livros e da leitura. Enfim, uma iluminação espiritual em que a claridade do paraíso vem acompanhada pela musicalidade dos cânticos angélicos.

Seja como e o que for, a declaração de Alberto Mussa sobre uma casa-estante (ou seriam estantes-casa?) desabou sobre minha história e abriu com cunhas de inveja e de descoberta uma percepção de felicidade tipo Instagram. É possível alguém nascer entre livros? A felicidade mora em milhares de livros? Então é possível ser inoculado pelo vício da leitura por meio da biosmose com as estantes?

Em minha profissão, tão livresca e livreira, como a dos escritores, encontrei não-leitores em famílias abastadas e de biblioteca doméstica razoável, além de um cartão de crédito generoso que aceitava também a compra de livros. Encontrei leitores famintos e desejosos, olhando com cobiça para as vitrinas de antigas livrarias (hoje, são telas digitais), com os bolsos vazios, a cabeça a inferir narrativas na impossibilidade de as ler concretamente. Encontrei leitores escarrapachados em bancos, poltronas, beirais de janelas, no assoalho das ditas livrarias antigas, absortos viajantes de livros que podiam ler mesmo sem poder adquirir.  Encontrei leitores, e a mim mesma, nos espaços de bibliotecas públicas, buscando, encontrando, emprestando, devorando os livros que o bolso vazio não conseguia manter nas tábuas-estantes do domicílio carente de pão, mesmo sonhando com poesia.

É possível uma casa com milhares de livros? Minha infância, como a de muitos leitores, costumava olhar as paredes e encontrar nos cantos mais desprezados dos armários apenas alguma dezena de volumes de uma pobre bibliografia escolar.

Talvez em algum tempo não tão longínquo, eu tenha associado um acervo volumoso com um acervo incomensurável de leituras, atestando “aqui está um leitor” ou “só daqui pode sair um leitor compulsivo”.  Acabei aprendendo que ter livros não é ler livros. É apenas um indício de leituras. E indício não é prova, também aprendi.

A pandemia do monstruoso COVID 19 nos ensinou que até o cenário de livros podia ser apenas um pano de fundo cênico a indicar que o protagonista da fala da live exibia somente uma imagem de felicidade contínua, atestada pela quantidade de livros fakes.

Mas, mesmo fakes, as estantes pareciam escorar as falas, decorar a figura humana, anunciar uma iluminação desejosa. Porque ser leitor tem alto grau de feitiçaria potteriana, um incômodo clariceano prestes a irromper em criação, um alumbramento roseano a expandir o sentido das palavras, uma clareza (ou claridade) ítalocalvínica a iluminar o mundo e seus passageiros.

Diversamente de Alberto Mussa, minha infância não teve estantes e milhares era uma conta que eu não sabia fazer. Mas o vício da leitura, ah, esse sim, encontrou casa acolhedora, mimos e consistência.

Não tenho dúvida nesta etapa em que os anos de vida diminuem: a infância que não tive, eu a criei para mim. E milhares passou a ser meu cotidiano.


Ler poderia ser…

Marta Morais da Costa

Ilustração de Poty Lazarotto para Sagarana, de Guimarães Rosa.

Ao longo dos anos em que trabalhei com leitura e formação continuada de professores, não foram poucas as vezes em que eu surpreendia os olhares descrentes dos ouvintes diante de minha afirmação de que leitura não é prazer – assim, definitivo, moralista, fechado – e sim um trabalho, que requer operosidade de todos e de cada um dos leitores. Ou já cansados antes mesmo de iniciar o trabalho. Ou secos e áridos diante da necessidade de postergar as possíveis lágrimas de prazer. Ou demissionários antes da ação, dada a exigência de muito mais trabalho.

Era melhor promover na leitura do texto literário o imediato bem-estar da mesmice, o riso solto do trocadilho sediço, a inoperância da historieta desengonçada e sebosa do texto estereotipado. Nada do trabalho cuidadoso, exigente, minucioso, envolvendo corpo e Inteligência e repertório e reflexão e tempo estendido. Mais fácil a resposta primeira e já formatada. Mais fácil a emoção do arrepio do que a conquista do sentido pessoal e significativo.

Para não cansar leitores e mediadores, sobrevivem uma escola que patina em seus índices há mais de vinte anos e uma população à mercê de qualquer notícia falsa, mas espetacular; reféns de nem-nens e de espertalhões, submissas ao atraso e minimizando (ou pior, desdenhando) o conhecimento.  

Um país que, mesmo mudando os parâmetros, perde leitores continuadamente, não pode crer nas palavras citadas a seguir, porque seria reconhecer a própria falência.

“Ler um texto não é tarefa simples, requer competência. Requer atenção, memória, concentração, capacidade de relação e associação, visão espacial, certo domínio léxico e sintático da língua, conhecimento dos códigos narrativos, paciência, imaginação, pensamento lógico, capacidade para formular hipóteses e construir expectativas, tempo e trabalho. Um texto é um constructo que é preciso desconstruir e reconstruir e isso exige esforço, embora não signifique que seja isento de prazer. Ler não é resolver uma palavra cruzada, mas é sim encontrar um sentido. O sentido não é a famosa mensagem da qual tanto se falou (ou mal falou) em outros tempos, ou melhor, não é uma mensagem que se desate do texto, mas a mensagem que é [o texto]. O sentido do texto não é algo que se acrescente ao texto, é, repito, o próprio texto. O texto é parte invariável da leitura, o seu pilar, e o espaço comum de todas as leituras, e o fato de que estas sejam variáveis e diferentes não procede de nenhuma qualidade imanente, mas sim dos diversos fatores que se cruzam e entrecruzam durante o processo de leitura.”

(Constantino Bértolo. O banquete dos notáveis: sobre leitura e crítica. Livros da Matriz, 2014)

Ex-pesos pesados ou A cultura vai aonde o povo está

Marta Morais da Costa

A professora Liana Leão postou uma mensagem no whatsapp no dia 24 de janeiro de 2024 reproduzindo a notícia saída no jornal com a seguinte manchete: “Busto de Nelson Rodrigues é levado do cemitério”. Seria irônico, se não fosse trágico.

Do mesmo Cemitério de S. João Batista em novembro de 2023 roubaram a estátua fúnebre de Cláudio de Sousa, outro dramaturgo, autor de “Flores de sombra”, fundador e um dos presidentes da Academia Brasileira de Letras.

O busto de Nelson Rodrigues pesava apenas 120 quilos e a imagem de Cláudio, mais de cem quilos. O teatro pesa muito.

Aliás, os ladrões devem ter, além de outras qualidades técnicas, uma boa capacidade de leitura: dramaturgo que escreva peças denominadas “A falecida”, “Viúva, porém honesta”, “Senhora dos Afogados” e um livro de contos “A coroa de orquídeas” deve estar pedindo para que os ladrões entrem no cemitério na ex-calada da noite (hoje todas as noites são do balacobaco) e satisfaçam a morbidez do escritor levando-lhe o busto de alto peso (o preço vai embutido) para aliviar seu – do Nelson Rodrigues – espírito mórbido.

Refiro-me aos títulos, porque, tenho absoluta certeza, os larápios não leram uma linha sequer da obra do autor. São os leitores que inferem dos títulos não apenas o enredo, mas a vida e a visão de mundo do escritor. Se tivessem lido algumas das obras do dramaturgo, conheceriam uma morbidez mais complexa, que ultrapassa a carne rota e poeirenta dos cemitérios e invade a alma de perversos e criminosos homens bárbaros. Mulheres inclusas.

Ao pó mais abjeto voltarão esses que desacreditam da arte, inútil em sua perquirição das almas, mas acreditam no vigor da alma bronzeada de míseros reais dos ferros-velhos, úteis para outros enlevos, estes, sim, mortais.

Cláudio de Sousa não teve melhor sorte. Começou sua carreira de dramaturgo escrevendo “Mata-a ou ela te matará” em 1896. E selou a sorte de sua imagem póstera mais de um século depois. Um título desses conduz mesmo ao cemitério! Escreveu um ensaio biográfico, “Os últimos dias de Stefan Zweig”, e agora, deveria voltar para escrever sua autobiografia póstera depois de mais uma morte simbólica na ladroagem da imagem de bronze de uma centena de quilos.

No entanto, diga-se a bem da verdade, Cláudio de Sousa fez e faz rir na maioria de suas dezenas de peças teatrais e em seus relatos e ensaios. E em “Flores de sombra” foi de uma delicadeza poética fascinante ao escrever sobre os infinitos enredos sutis do amor. Tivessem os ladrões lido suas obras entenderiam melhor o espírito galhofeiro dos cariocas e suas infinitas tristezas escondidas nas máscaras do carnaval e no exibicionismo carnal – futuro pó –  das praias.

O desaparecimento (e quem sabe, o derretimento) dessas esculturas de dois intelectuais brasileiros de destaque seja o retrato volátil e efêmero de uma desgraça brasileira da atualidade: o desprezo dos vivos pela história cultural e o menosprezo dos vivos com qualquer elemento, componente e/ou assunto que lembre de longe um palavrão dos mais reprováveis: cultura.

R.I.P.

155

Foto por Pixabay em Pexels.com

Marta Morais da Costa

 

155 gramas. Em dez dias! Já comecei uma das minhas eternas promessas de Ano Novo.

Cada subida na balança (equivalentes a um degrau médio) implica a perda de 0,0012 calorias. Passo o dia subindo, enraivecendo, me deprimindo e descendo da balança. Hoje, já perdi nela exatas 0,08 calorias.

Li recentemente no jornal (a leitura consumiu 0, 000002 calorias) que mais vale uma dieta com alimentos equilibrados e com qualidades nutritivas do que a contagem de calorias/dia. Sou fã número 1 da matemática – o que não me impediu de trabalhar a vida toda com literatura, só para contrariar os que dizem que preferem o curso de Letras porque detestam Matemática. Pobrezinhos! Ops, isto é preconceito? Se for, apaguem e substituam por “otários”. Dizia eu de minha preferência pelo conhecimento dos números e de seus raciocínios sofisticados. Portanto, vou continuar contando calorias, c.q.d.

Quando adolescente pensava que o mistério mais misterioso do mundo estava contido na sigla c.q.d. Naquele tempo heroico, c.q.d. significava “como queríamos demonstrar”. Nesses tempos  audazes,  eu me julgava uma matemática do porte de Descartes, Euclides e Poincaré quando usava esse verbo na primeira pessoa do plural. Totalmente incluída.

E olha que naquele tempo não entravam em sala de aula calculadoras nem o Google e muito menos a IA!!! Era tudo no célebro (sic), na ponta do lápis e no cuspe da borracha!

Meu professor de Matemática, fumante inveterado em sala de aula, vestido à moda de o-que- estiver-à-mão-eu-visto, meio desligado da vida real (depois dizem que isso acontece só com poetas), mas um bamba com equações de todos os graus, inclusive os da crise climática atual. Amável no trato docente e satúrnico na avaliação das provas. Temido e execrado por 98% das alunas. Um grande professor grande.

Aprendi com ele e carreguei pelo resto da vida: não sou capaz de ajudar a resolver a “Equação diofantina x³+y³+z³=k”, mas surpreendo comerciantes, balconistas e vendedores de seguros, e até gerentes de banco, porque uso a cabeça para resolver porcentagens, as quatro operações, frações e, se duvidar, até medidas de cortinas e terrenos. Só não consigo c.q.d. porque os professores ganham menos do que os juízes e os militares.

Meu médico endocrinologista estabeleceu, de forma descrente, o quanto eu preciso consumir de calorias diárias para perder 500 gramas ao mês. Dobrei a aposta e consegui, em longos 30 dias, perder 465 gramas! Calculo que no andar dessa carroça eu consiga celebrar meus cem anos pesando mais do que pesava no ano passado! Vou ficar devendo dietas e cálculos retumbantes para a próxima encarnação…

Por essa enrolação toda, quem me lê sabe que lá vem decisão existencial, daquelas que mudam o mundo e meu entorno. É isso mesmo: abdiquei de luxo e riqueza, abdiquei de joias e viagens, renunciei aos restaurantes estrelados Michelin, às churrascarias de rodízio pantagruélico, às confeitarias mais badaladas, aos menus de chefs cinco estrelas, às espigas de milho na praia e aos quilos de pinhão assado na chapa no fogão à lenha da minha avó (herança que minha irmã conserva e engrandece). Mas não renuncio à minha balança algoz: será a minha cota de contribuição com a purgação dos pecados do mundo.

Começando pelo maior de todos, a gula, que me adotou e tem me mimado ao longo de décadas. Afinal, ela me ama e me faz companhia. Na carência de bons sentimentos na crise humanitária atual, não dá pra desprezar um amor assim.

Neste novo ano, iremos as três – a gula, a balança e eu – carnavalizar 2024, enquanto as pernas e os pés aguentarem e o rebolado não acabar com os quadris.

Evoé, meu povo!

Natal, outra vez: três personagens à procura de uma mensagem.

Marta Morais da Costa

PERSONA A – Minha gente!

PERSONA  J- Acho tão aconchegante e inclusivo esse “minha gente”!

PERSONA  Z – Tão comum…

PERSONA A – O Natal está chegando e eu gostaria de escrever uma mensagem a você, meus amigos.

PERSONA  J – Eu também. Mas teria que ser uma mensagem fora do esperado.

PERSONA Z – “Fora do esperado”? Ih, lá vem texto em linguagem experimental…

PERSONA A – Dizer de meu afeto e de quanto vocês são imprescindíveis na minha vida.

PERSONA J – Eu sabia”! Lá vem a linguagem acadêmica. Imprescindível é do tempo do uniforme de normalista.

PERSONA Z – Afeto é bom e está na moda. Quero ver encaixar a vida toda na mensagem.

PERSONA A – Já sei! Como se diz hojemdia: Amo vocês!

PERSONA  J- Eita, que fofura mais gratuita!

PERSONA  Z – Amar pode ser tanta coisa ou ser apenas uma fala apressada e, na essência, banal. Tô achando que é a segunda.

PERSONA A – Não, não gostei! Melhor dizer que estou sonhando com um Natal de paz e vocês estão na origem dela.

PERSONA  J- Ééé, só pode ser paz sonhada. Ali, no vamos ver, é guerra o tempo todo!

PERSONA  Z – Sonhar não custa, mas também não paga.

PERSONA A – Que seja um Natal de luz e de brilhos!

PERSONA  J- Tipo árvore de Natal, né, fofa?

PERSONA  Z – Luz de pisca-pisca.

PERSONA A – Que neste Natal vigore o sentido primeiro da palavra: nascimento para uma nova vida.

PERSONA  J- Mais linguagem acadêmica: só faltou usar “etimologia” no lugar de sentido primeiro.

PERSONA  Z – Taí um desejo bonito: a oportunidade de recomeçar.

PERSONA A – Que as bênçãos do Senhor recaiam sobre todos, em especial sobre os pequenos, os fracos, os necessitados, os fragilizados.

PERSONA  J- Agora sim: gostei dessa abrangência. Me lembra “Boas Festas”, de Assis Valente. É canção tipo “pare e pense”.

PERSONA  Z – Essa democracia toda ainda não vi por aqui…Só em mensagem  de Natal.

PERSONA A – Amigos, neste final de ano, quero renovar os laços de nossa amizade, compromisso que me faz tanto bem.

PERSONA  J- Bonito! Estou solidária neste afeto tão enternecedor, comovente, prazenteiro, jubiloso e humano, que é a amizade. Ah, a academia!

PERSONA  Z – Faltou objetividade. Sugiro: Feliz Natal, amigos!

Foto por George Dolgikh em Pexels.com

Peter Burke. Ignorância: uma história global.

Marta Morais da Costa

Estava eu posta em sossego aposentadorial quando li o anúncio do lançamento de um livro do historiador Peter Burke. O título veio ao encontro de uns pensamentos meus, meio mórbidos, sobre o assunto: Ignorância. Uma história global. Tornou-se imediatamente um sonho de consumo.

Traindo meu amor por livrarias, entrei no site proibido e catei esta maçã do Bem e do Mal, trazendo num voo de alcíone o livro pra perto de mim.

Não o devorei porque o prato é suculento, substancial, substantivo. Consumi aos poucos, até porque a quantidade de informações é para um banquete pantagruélico.

Cá esteve durante dias comigo o livro sobre a ignorância escrito por Peter Burke em edição de 2022 pela Yale University Press, traduzido por Rodrigo Seabra  e  pela editado Vestígio, com uma apresentação bacana de Renato Janine Ribeiro. Coisa fina, que só vem reforçar em mim o Sócrates de “Só sei que nada sei.”

Degustei, terminei, dei tempo para uma deglutição lenta – meu médico me ensinou que é como devo ler a vida. Hoje, desejo atendido, leitura assimilada, brotou a vontade de escrever sobre o livro.

O que posso dizer de um livro que tem a seguinte dedicatória? “Para os professores deste mundo, heróis e heroínas na tentativa diária de remediar a ignorância.” Não tenho razão de cair de amores por ele?

Ponho aqui o sumário do livro na esperança de fisgar outros leitores para darem vida a seus conteúdos.

Parte I: A ignorância na sociedade

  1. O que é a ignorância?
  2. Filósofos e a ignorância
  3. Ignorância coletiva
  4. Estudando a ignorância
  5. Histórias da ignorância
  6. A ignorância da religião
  7. A ignorância da ciência
  8. A ignorância da geografia

Parte II: Consequências da ignorância

9. A ignorância na guerra

10. A ignorância nos negócios

11 A ignorância na política

12 Surpresas e catástrofes

13 Segredos e mentiras

14 Futuros incertos

15 Ignorando o passado

Conclusão: o novo conhecimento e a nova ignorância

Peter Burke faz deste um livro daqueles que não nos deixa do mesmo tamanho intelectual ao seu término. Sua leitura conduz a verbos como aprender, ampliar, questionar. Os exemplos históricos são, ao mesmo tempo, informações, advertências e material para reflexão.

A primeira parte se responsabiliza por, didaticamente, conduzir o leitor pela mão para fazê-lo vislumbrar os campos vastos da ignorância e das intenções de mantê-la viva e acesa para disso tirar proveito. É um painel amplo e comprovado de que a ignorância não é somente desconhecer fatos e procedimentos em áreas do saber humano. Ela é, acima de tudo, um instrumento ideológico e um recurso de resultado quase seguro para reduzir o humano em nós.

A segunda parte, mais dolorida para a leitura e conhecimento, mostra, com minúcias, fotos e ampla bibliografia, o porquê de catástrofes que se abateram sobre povos e civilizações, bem como abre um amplo espectro de perguntas a respeito do que poderá ser o futuro à nossa frente. E até mesmo o quanto esse futuro pode ser retrógrado.

O Brasil está presente em vários momentos do livro e quase nunca com sua face “risonha e  franca”. Nada de futebol, carnaval e praias deslumbrantes.

Também não estão no livro apenas fatos de um passado milenar. Até a pandemia de SARS Covid 19 estende seu manto maléfico na forma do negacionismo da ciência.

Evitando intencionalmente dar um spoiler da obra, estas poucas palavras são antes um convite para a leitura, um convite para refletir e lutar nas hostes daqueles que, com ou sem diploma, educam, combatem por vezes com poucos recursos e forças a ignorância.

Sugestão de leitura:

Peter Burke. Ignorância: uma história global. Tradução Rodrigo Seabra. São Paulo: Vestígio, 2023.