Sem ponto final

Marta Morais da Costa

Em meu dia de leituras cabem tantos textos de tantos gêneros de tantos autores e muitos assuntos. Passo do exótico ao erótico, do econômico ao espacial, do gastronômico ao policial, do esportivo ao musical, do horóscopo à política. Tropeço nas linhas retas e nos assuntos tortos. Leio os colunistas que odeio e aplaudo os que amo.

Dizem línguas venenosas que jornal de aposentado tem apenas três seções: obituário, horóscopo e palavras cruzadas. Ao considerar minha leitura, posso afirmar que estou desaposentada. Quer dizer, quase, pois há dias em que caio na armadilha dos horóscopos e dias em que o temor me precipita para as palavras cruzadas, em busca de oxigenação cerebral.  Finalidade que, por exemplo, as notícias políticas não produzem em mim.

Abrindo o linque enviado por uma amiga, que deveria dar acesso à sua crônica semanal, caí, desavisada, nas notas de falecimento referentes aos três últimos dias.

Bafejada pela vontade dos deuses, mergulhei texto adentro: nomes, idades, hospitais, endereços e velórios. Encontrei registros de falecidos sem a identificação do nome do pai. (Ah, esses homens cuja responsabilidade some num jato!). Confirmei que a morte não respeita idades, nem considera profissões e, muito menos, dá bola para sobrenomes ilustres ou embaçados.

Mas, ficcionista fiel, construí histórias singulares e redes coletivas. Reuni em espaços comuns idosos, jovens e bebês em narrativas enredadas e recheadas de simultaneidade e coincidências.

Dois idosos, com o mesmo sobrenome e em registros separados, a sugerir uma trajetória conjunta e a morte idem, quem sabe na impossibilidade de sobreviverem um ao outro depois de uma longa união. A mãe, estuprada, que morre ao dar à luz um bebê enfermiço que a acompanha na viagem ao desconhecido. Um jovem a desafiar a sucessão normal das gerações, tendo gozado loucamente seus poucos anos de vida. O pai que, acidentado, leva consigo o filho querido para uma jornada sem rumo definido. O avô, deixado na casa de repouso com a promessa de visitas periódicas, encontra quem poderia ser uma companheira derradeira, mas as debilidades comuns e as desiguais levaram os dois, em dias subsequentes, para o descanso final. A mãe amorosa, o pai provedor, a mãe autoritária, o pai omisso, o filho responsável, a filha desorientada, a vítima de bala encontrada, mortes voluntárias e mortes rejeitadas: a vasta galeria literária de personagens e biografias que povoam a mente do leitor quando o gatilho da ficção é acionado. Estavam lá a literatura e a vida em espelho multiplicador.

Não li a crônica, retornei da visita ao reino de Plutão envolvida por uma atmosfera de histórias e a imaginar segredos que cada um daqueles nomes levou consigo.

Fechei o jornal com um clique lento e a convicção de que um dia meu nome estará em uma página de um jornal que algum leitor desavisado lerá antes de, ele também, ter a certeza que seu nome estará lá um dia e que outro leitor desavisado lerá e terá confirmado que em um futuro qualquer seu nome…

Foto em fim de tarde

O dia ainda esbanjava dourados quando ele apareceu e buscou apoio na pedra do jardim, cercada por amores perfeitos. Parecia intranquilo, a cabeça em rotação da esquerda para a direita. Da direita para a esquerda. Os olhos curiosos buscavam uma paisagem familiar, som de vozes, cheiros e talvez um horizonte próximo.

Havia guardado na memória luzes, cores e movimentos interrompidos por fios regulares e pela impossibilidade de contato. Até que, de repente, inexplicavelmente, rasgou-se uma brecha no horizonte e as asas o levaram através de aberturas e brisas para uma altitude desconhecida, superando paredes e telhados.

Ao sol, seu corpo estranhou a quentura, buscou sombras, todas longínquas. Fumaça, ruídos, movimentos ininterruptos, figuras. Um mundo todo novo, sem limites, sem clausura. Atravessava o espaço com alguma dificuldade no começo, logo ganhando flexibilidade e amplitude.

Não demorou, veio o tempo da sede, o cansaço das asas, o peso dos pés. Buscou uma árvore. Nenhum verde, nenhum galho. Buscou água, nem um rio, nenhuma fonte. Buscou apoio e encontrou a pedra.

A pedra que povoava o jardim. Lisa, quase branca, redonda, fresca, protegida pela sombra do edifício. Alto, de vidros semelhantes a águas retidas em aquários. Atrás de um deles, uma pessoa em clausura, como havia sido a sua.

Movia-se à vontade sobre a pedra e pôde admirar vagarosamente o amarelo vibrante das penas, esvoaçando na brisa, experimentando a liberdade. Renascia.

Sobressaltou-se quando sentiu próximas duas crianças, fotografando com olhos espantados os movimentos de seu bico, dos pés mantendo o apoio, do corpo hesitando entre o voo e o cansaço.

Logo materializou-se o adulto, com olhos escondidos atrás da câmera, a registrar espantos e indecisões.

Subiu. Sumiu. Refez rotas e rodeios. Deixou lá embaixo a imagem fixada numa câmera que roda de mão em mão e que espalha no ar a poesia da passagem do pássaro amarelo e fremente, lépido e livre, em direção ao horizonte.

Alá-lá-ô

Marta Morais da Costa

“Alá-lá-ô, ô-ô-ô, ô-ô-ô / Mas que calor, ô-ô-ô, ô-ô-ô “

(marchinha de Haroldo Lobo e Nássara – 1941)

Dirão alguns: esta é de meu tempo!

Outros retrucarão: cara, não sabia que era tão antiga!

Outros, melancólicos: baile de Carnaval ou na rua sem essa marchinha não tem valor!

Alguns, surpresos: mas essa letra é muito atual!

Esclareço: não sei se pensavam na importância dos estados árabes ou na crise climática.

Só sei que cantei e pulei, animadíssima, em salões de velhos carnavais. Sem pensar em religião, petróleo ou desmatamento. Valia apenas o ritmo e o saracoteio. De vez em quando um siricotico: pisão no pé, confete nos olhos e na boca, cabelos entremeados de serpentinas, abuso alcoólico trazendo odores, gestos e olhares de alguns bebuns que, surpreendentemente, sumiam do salão, acompanhados por diretores e, ao lado, a turma do deixa-disso apaziguando pais, maridos e namorados.

De longe,  pais e tias a cuidar dos seus (principalmente das suas); afinal, Carnaval é para espíritos fortes e dispostos. Cansaço, nem pensar. Afinal havia o tempo de descanso dos músicos e a corrida para a toalete mais próxima. Na volta, goles de guaraná ou coca-cola: álcool nem pensar. Afinal, a alegria tinha um espaço natural e o esquecimento de problemas era do código comportamental aceito sem reclamação. Melhor ainda: festejar era parte das férias em estágio de conclusão.

O ano letivo começava em março. As férias eram de três meses corridos (com mais dias ou menos dias, dependendo do cidadão: estudou e passou: férias a partir de novembro.; vadiou ou se perdeu nos conhecimentos, novas provas, segunda época, férias a partir de janeiro). Mas passar de ano ou reprovar e ter que repetir a série escola não impedia o Alá-lá-ô.

E no salão democrático, bons e maus estudantes formavam o cordão carnavalesco que arregimentava pessoas, trazia as tias, insistia com os pais, esvaziava as mesas, cooptava os presentes e fazia serpentear os movimentos ao som das marchinhas pelos poucos espaços vazios de uma festa quase-familiar, onde Baco era amordaçado por uma liberação controlada e bem-posta.

Os pecados do lado de baixo do Equador eram tão comportados que o padre na confissão de quarta-feira de cinzas não passava penitências com mais de cinco Ave-Marias: quase todos os supostos bacantes pareciam fantasiados de anjos, meio decaídos, mas revitalizados pelos Alá-lá-ôs, “Saca-rolha”, “Ó Abre Alas”, “A canoa virou”, “Mamãe eu quero”, “Aurora”, “Jardineira”, “Pierrô apaixonado”, “Chiquita Bacana”. Letras que, cantadas, pareciam ser só ritmo e folia, sem sentido, nem correspondência com a realidade. Discurso politicamente correto? Censura moral? Que nada! Toca pular, fazer guerra de confetes, puxar cordão, gastar energias!

Afinal, na quarta-feira “sempre desce o pano” e as cinzas, marcando a testa em cruzes improvisadas, ajudavam a enterrar o Carnaval daquele ano, para que ressuscitasse em velhas e novas marchinhas no ano seguinte.

Só vim a conhecer o outro lado do Carnaval quando li Manuel Bandeira: “Epílogo”.

Eu quis um dia, como Schumann, compor
Um carnaval todo subjetivo:
Um carnaval em que o só motivo
Fosse o meu próprio ser interior…

Quando o acabei — a diferença que havia!
O de Schumann é um poema cheio de amor,
E de frescura, e de mocidade…
E o meu tinha a morta mortacor
Da senilidade e da amargura…
— O meu carnaval sem nenhuma alegria!…

Ah, mas esta é outra história!

Neste sábado de Carnaval, quero mais é cair em uma alegria efêmera, virar rainha de copas, sair de porta-estandarte, cantar as antigas modinhas e acreditar que, em algum tempo, o Carnaval foi apenas a passagem das férias para os estudos, da vida despreocupada da infância e da adolescência para um tempo de trabalho e de criação  que até hoje vive em mim.

Alá-lá-ô-ôôôôô.

Um entre 4

Marta Morais da Costa

Foto por Xi Xi em Pexels.com
Ler jornais está se tornando um exercício flagelante, torturador. Diariamente uma dose cavalar de surpresas más, de informações dolorosas, de fechamento de horizontes de esperança se abate sobre mim durante o ato de ler telas e telas, com imagens e publicidade e textos escritos.
Hoje doeu ler “Geração nem-nem: quantos jovens não estudam nem trabalham no Brasil? E nos países ricos?”, publicado na edição de 10 de setembro de O Estado de São Paulo. São 24% dos jovens entre 25 e 34 anos que se dedicam a construir um futuro de sombras e apagões. Por diferentes razões: necessidade de emprego, preguiça, rejeição à escola e aos estudos. Entre as mulheres, gravidez, tarefas domésticas e cuidar de outros, sem eliminar aas três justificativas anteriores.
Está no jornal, com todas as letras:
“Os jovens entre 25 e 34 anos que não trabalham nem estudam — os chamados “nem-nem” — são quase 1 em cada 4 (24%) no País, conforme o estudo Education at a Glance 2024, divulgado nesta terça-feira, 10, pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), grupo de países desenvolvidos economicamente do qual o Brasil não faz parte. Esse número caiu 5,4 pontos percentuais em sete anos (era de 29,4% em 2016), mas ainda é considerado alto pelos especialistas.
O número da entidade internacional é pior do que o divulgado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) da Educação, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no ano passado e correspondente a 2022, de 20% (9,6 milhões de jovens). A PNAD avalia uma faixa etária diferente: dos 15 aos 29 anos.”
No amplo espectro da idade dos 15 aos 34 anos, em que se alicerçam valores, competências, habilidades, crenças e vida familiar independente, quando os estudos ainda encontram uma mente aberta e idealista, os brasileiros abrem mão de estudos profissionalizantes ou de aprofundamento para cuidar da vida prática e da prática que provavelmente se tornará repetitiva e defasada em pouco tempo.
Na sociedade cambiante e veloz, a ausência de vontade e resiliência para investir na autoeducação e em projetos de vida que passem além do sucesso Tik Tok/ Instagram condena os novos analfabetos funcionais a uma vida boçal, medíocre e massificada.
Talvez o que seja mais excruciante na reportagem além dos números, é constatar que a diminuição proporcional se dá em um ritmo tão lento que o Brasil se (des)qualifica para ocupar sempre posições em final de lista, em um inalcançável futuro de vida digna. São milhões de pessoas a viver um estado de alienação, de vida à margem das conquistas civilizatórias.
Enquanto ainda lutamos contra o analfabetismo funcional, países mais avançados, cultural e economicamente, discutem como tirar proveito da Inteligência Artificial e como criar um mundo em que possa haver um pouco mais de segurança e de crença no futuro.
Novas adversidades irão surgir, isso nem se discute. Mas pessoas com melhor conhecimento e preparação sempre estarão em vantagem sobre os que nem estudam, nem trabalham, nem usam o cérebro em funções propriamente humanas.
O mais deprimente nessa história toda? Saber que nem todos nós poderemos esperar pelas décadas necessárias para que essa porcentagem mortífera diminua.

Lua azul

Ela havia aprendido que “só pelo amor vale a vida”. Ela associava a luminosidade da noite, com suas vias estreladas, as pratas lunares, a brisa noturna, aos escurinhos, às declarações de amor, aos gestos e aos corpos em contato. Criava cenários com rosas/lírios/dálias e verbenas/lavandas para perfumar em cômodos íntimos as descobertas do amor.

Não recusava olhares e palavras, desde que viessem acarinhados por afetos apaixonados e loucas imagens dos sentidos desatados em circunvoluções e redemoinhos em homenagem aos amantes.

Imaginava canções pragmáticas e hinos simbólicos ou realistas ao amor em todas as idades. A sonoplastia e a coreografia ficavam à escolha e ao pendor voluptuoso dos pares em danças em louvor a Afrodite, ou se o leitor preferir, a Vênus, em especial a Calipígia.

 Quem é esta? De imediato esta escriba, em seu dedilhamento internético, vai buscar uma explicação que esclareça os leitores menos afeitos à estatuária grega. A cronista por vezes perturba a leitura com suas citações meio enigmáticas e com fumaças eruditas. Daí que sua dublê escrevente tem que fazer hora extra e trabalho fora de contrato para não deixar os poucos leitores dos textos da dita cronista sem um apoio para a compreensão da crônica.

Vênus ou Afrodite Calipígia “é uma famosa estátua romana antiga de mármore, que se acredita ser uma cópia de uma original grega mais antiga Seu nome significa literalmente “Vênus (ou Afrodite) das belas nádegas”. A estátua representa uma mulher seminua levantando seu peplo diáfano para cobrir seus quadris e nádegas enquanto olha para trás por cima dos ombros, talvez para admirá-las. O tema é convencionalmente identificado com a deusa Vênus, mas é igualmente possível tratar-se de uma mera mortal.”

 

Em meu passeio pela Wikipédia, passei de um olhar retrospectivo para um pedido de socorro a informações mais pé-no-chão sobre um uso mais científico e objetivo do nome dessa deusa e encontrei uma versão masculina para formar o par romântico. Um planeta.

“Vênus é considerado um planeta do tipo terrestre ou telúrico, chamado com frequência de planeta irmão da Terra, já que ambos são similares quanto ao tamanho, massa e composição. Vénus é coberto por uma camada opaca de nuvens de ácido sulfúrico altamente reflexivas, impedindo que a sua superfície seja vista do espaço na luz visível.”

Rabisquei os dois fragmentos explicativos em um perfumado papel de carta cor-de-rosa e enviei para ela, a enamorada, a que está em devaneios de amor perfeito. Para a cronista, mandei duas mensagens de whatsapp com os fragmentos encontrados a título de colaboração.

Nenhuma das duas declinou recebimento. Esta escriba aos poucos está se acostumando aos apagamentos de mentes obcecadas de amor e ao descaso de cronistas auto-confiantes.

Para minha total surpresa, chegou-me hoje às mãos, em artístico papel linho, a seguinte mensagem – já devidamente enviada à cronista:

Senhora escriba:

recebi sua mensagem com a informação sobre as duas Vênus, a feminina e a masculina.

Confesso que me comovi ao descobrir que minha crença inabalável no amor também contemplava um par de seres deste mundo: uma estátua e um planeta – não poderia ser uma planeta, já que a palavra termina com vogal feminina? A presença da deusa do Amor nomeando as duas existências só vem comprovar que estou certa em imaginar cenas e cenários dominados pelo afeto amoroso.

Agradeço.

(a) Ela

A cronista até hoje não havia se manifestado.

Eis senão que recebo um e-mail – formato já meio em desuso, atestando a possível idade provecta da autora cronista.

Prezada senhora escrevente,

venho lhe comunicar que terminei de redigir esta crônica e solicito que seja devidamente registrada em palavras e frases, parágrafos e pontuação, da forma que vai anexa a esta mensagem.

Sem mais, reitero meu desejo de que não seja alterada nem uma vírgula do que escrevi. E declaro extinto nosso contrato.

(a) Cronista

Reproduzo, conforme recebimento:

Ela era uma romântica inveterada. Passava noites à janela, admirando a Lua, a chuva, as estrelas. E pedia às entidades celestes que a abençoassem com um amor, mesmo que frágil, mas infinito enquanto durasse.

Seus pedidos se intensificavam quando brilhava no céu a Lua azul. Como os astros são indiferentes aos desejos humanos, os anos se passaram, ela se cobriu de rugas e cabelos brancos, mas o amor não bateu à sua porta.

Em noites de Lua cheia, é possível distinguir seu perfil na janela do apartamento do pequeno e envelhecido prédio, hoje cercado de altos edifícios que lhe roubaram até a visão sem horizontes da Via Láctea e da Lua de diferentes cores.

Marta Morais da Costa

Pensamentos nostálgicos sob a luz do luar

Marta Morais da Costa

Foto por Pixabay em Pexels.com

Em noites de super-Lua, me surpreendo em repentes de nostalgia e recordação de tempos idos. Deve ser porque a nada cândida hospedeira de São Jorge e de seu dragão de estimação manda em nosso humor feminil.

Ah, as mulheres!! Nada de “piuma al vento”, esse instrumento de suave agressão masculina ao querer definir nossa desafiadora multidimensionalidade e diversidade cambiante por excesso de interesses! Somos capazes de viajar em pensamento por diferentes rotas e em diferentes veículos e sempre chegar a um ponto único de destino: o de nossa sagaz e autóctone satisfação com a vida.

E sem deixarmos de ser dramáticas, apaixonadas e eternas sofredoras ficcionais.

Mas o assunto não era esse universo feminino genérico e meio exagerado. A super-Lua continua a brilhar e a objetividade bate à porta. Do que mesmo você tratar em seu texto, ó cronista divagante?

Algo a ver com nostalgia. Em minha índole conservadora – neste estágio da vida, devidamente enrijecida –  os objetos são presenças quase íntimas devido ao longo tempo que convivem comigo. Ainda cumprem suas funções, meio cansadinhos, com visual que envergonha meus filhos.

– Mãe, que tal trocar o liquidificador? Você ainda tem esse celular lento? Sabia que existem panelas de inox? Câmbio mecânico, mãe?

Pois é, como são Jorge continua lá, não deixa seu cavalo e nem faz amizade com o dragão, meu carrinho também não visita outras garagens, nem quer saber de um pezinho menos leve para pisar em sua embreagem ou uma mão mais magra pra repousar sobre o volante de direção.

Mas o carrinho garboso precisa de periódicas revisões, cada vez em períodos mais curtos. Por isso, telefono pra oficina e me atende seu Jorge (outro):

– Ah, a senhora vai trazer pra revisão? Ainda é o mesmo carro?

Aquele ainda quase rompeu minhas coronárias. Nem tive coragem de perguntar se o ainda era curiosidade, ironia ou deboche. Vai que fosse esse último…Daí até o coração iria à falência.

– É seu Jorge, é o mesmo. (um pouco de rosa forte no rosto: ainda coro como velha adolescente) . Intimamente jurei pra mim: será a última revisão, seu Jorge. Vou trocar de carro.

Essa conversa e seus protestos de renovação aconteceram no mês passado.

Meu belo corcel agora tem um motor silencioso, a troca de marchas parece acontecer na maciez de um carinho, os pneus deslizam suavemente, até a buzina ficou mais forte. Mágica de um certo Jorge.

Como posso trocar esse velho amigo? E essa super-Lua falando de amores e entusiasmos? Quase que sozinho, o carro estaciona no mesmo espaço da garagem, se duvidar dentro das mesmas medidas de largura e comprimento do piso. Volta pra casa e vai descansar.

Quem sabe no próximo ano eu procuro um novo carro? Depois de uma última revisão, viu, seu Jorge?

No sítio do Picapau Amarelo, os vingadores perseguem o menino marrom por causa do avesso da pele

Marta Morais da Costa

A literatura é avassaladora. Em sua natureza e na produtividade. A força invasiva no pensamento do leitor – para a mudança e para a permanência – da natureza própria da literatura e a reprodução incontrolável de escritos, livros e formas de transmissão. São aspectos que recebem a atenção dos estudiosos e escritores, e, acima de tudo, se tornam objeto de discursos extremos e delirantes.

 

 

Freio de mão e pé no chão pode ser uma receita para dias de turbulência, como os recentes. Não se trata de jogar na vala geral da polarização: a causa é mais complexa.

A polarização é resultado e pode dispensar o conhecimento. Entra em ação a “ignorância artificial”, assunto tratado com inteligência e alta qualidade textual por Eugênio Bucci em sua recente coluna no jornal “O Estado de São Paulo” (https://www.estadao.com.br/opiniao/eugenio-bucci/sobre-a-ignorancia-artificial/), essa rede de ideias pré-formatadas e empurradas goela abaixo de gentes crédulas, de boa e má-fé.

Faz parte do cardápio dessa ignorância artificial os recentes casos de censura de livros, acentuadamente os de literatura infantil. O perigo de atribuir a personagens (afinal, seres imaginados em um mundo de invenção) que não são o vizinho da direita, o irmão do dono da casa da esquerda, o pedestre que atravessa a rua, a mulher no banco de espera do ônibus ou a colega de trabalho.

As narrativas passaram a ser consideradas manuais de comportamento, menus de atitudes, publicidade de valores morais e por aí afora. Desenquadram-se de uma cronologia histórica, viram textos escritos neste momento e com personagens atuais.

 

Nunca objetos de compartilhamento de opiniões diferentes, ouvidas e respeitadas de hoje e do tempo de seu autor. A opinião já nasce vestida em armadura e armada até os dentes. Ninguém contextualiza na história da literatura. A narrativa ou o poema se transforma, na interpretação falsamente crítica e intencionalmente tendenciosa, em uma bula de remédio para as necessidades cotidianas dos leitores, como resolver conflitos familiares, exemplificar o que é bulling, disfarçar a depressão, consolar da morte do animal de estimação. Literatura é antes de tudo arte e invenção. Textos voltados à didática da vida escanteiam a literatura e privilegiam sua utilidade prática.

A violência da personagem, que, na narrativa infantil, via de regra, termina por ser condenada e penalizada, passa a ser entendida como uma lição comportamental, ou seja, uma ordem: faça assim ou imite a personagem, leitor ingênuo!

Quem faz uma reflexão sobre a sociedade violenta e de valores hipócritas? Pronto, está declarada guerra ao texto provocador. Melhor censurar a literatura (essa libertina que deseduca) do que trabalhar em prol da compreensão do problema em suas dimensões diversificadas e na adoção de atitudes que o solucionem.

Falta a esses censores deseducados um enfrentamento de seus medos que a literatura vem desvendar. Quanto do medo adulto se manifesta nos pedidos de retirada de livros de literatura das estantes (tão raras e pobres) das bibliotecas escolares? Quanto de má pedagogia existe que silencia sobre a censura ou esquece seu papel de favorecer a compreensão da história e da vida, latente no texto censurado? Quanto de jornalismo sensacionalista está nas manchetes que anunciam mais um livro censurado, sem que trate com a devida inteligência a natureza do texto literário e as questões de interpretação? Lembrar que a interpretação resulta sempre de um histórico de leitura e não de ideias/valores projetados desrespeitosamente sobre o texto.

 Reconheço como é meritória a preocupação dos pais com a formação psíquica e emocional de seus filhos. Reconheço como a escolha de livros é, por vezes, resultado de gentes que não têm formação adequada para realizá-la. Reconheço que existem equívocos na mediação da leitura literária (por presunção, prepotência ou desconhecimento dos mediadores: exceções à parte). Reconheço que há muito livro ruim circulando como se fosse literatura de qualidade humana e estética. Reconheço que existem erros no tratamento e na adequação de livros a seus leitores mirins. Mas me pergunto: o que fazem os atores/agentes desses equívocos? Dialogam, trocam argumentos, propõem soluções? Não. É mais fácil censurar. Propostas de cadeia para o livro e não de livros em cadeia para desenvolver o pensamento e a interlocução!

Mas não são apenas os leitores que desaparecem a cada pesquisa sobre o status da leitura no Brasil. Somem leitores qualificados e aparecem os profetas do caos. Saem a beleza e a força da literatura e passam a vigorar os estatutos dos medos e o obscurantismo.

Proibir atiça o desejo. Talvez seja uma boa propaganda para leitores curiosos.

Enfim, não é apenas a educação institucionalizada que vai mal…

Desapegos

Marta Morais da Costa

A palavra apego, embora de origem latina pela forma verbal adpegare, tem sido uma constante no léxico do idioma falado no Brasil. Não por sua versão positiva: apego como sentimento de afeição, de simpatia, de dedicação e estima. Mas especialmente por sua forma negativa, dita e escrita em forma afirmativa, quando não imperativa: desapego e desapegue.

Em sua versão recente é uma palavra tangencial de livre-se, livramento, fique mais leve, passe adiante. E aí os objetos diretos da frase ou do complemento nominal (desapego de…) podem estar contidos nos mais diversos campos semânticos: coisas, pessoas, sentimentos, ideias.

Desapegue de suas roupas sem uso, desapegue dos sentimentos frustrantes, desapegue de pessoas pessimistas ou fofoqueiras e até o extravagante e abusado desapegue dos livros que já leu, que ainda não leu, que jamais lerá.

É um tal de distribuir, dividir, compartilhar, livrar-se do que foi atado e que compõe a base sólida e segura de sua vida, para lançar-se a novas bases a serem, por sua vez e futuramente, desapegadas.

Para algumas pessoas desapegar-se é apenas trocar os móveis e tapetes, livrar-se dos eletrodomésticos antiquados (sem timer nem lâmpadas led), colocar em outras mãos tudo aquilo que um dia foi uma sinalização, uma identificação e a memória pessoal.

Desapegar é um ato heroico e um grito de liberdade. Em termos. Cortar laços, representados por objetos e pessoas, não é (ou não deveria ser) uma atitude inócua, irresponsável, desestruturante. Um lançar o passado na bacia das almas, apagar as provas do vivido, esquecer os exemplos de um tempo, talvez mais feliz.

Desapegue, dizem tantos: reconheça que eram coisas e pessoas efêmeras em sua vida, trocados que a atualidade da abastança despreza e destrói. Eram fúteis, vaidades tolas, pecados a serem escondidos. Desapegue rapidamente, antes que a hesitação habite seu desejo ou sua obediência. Lance longe, encaixote e envie sem remetente, cubra, embrulhe, despache. Sem remorsos, vire as costas ao que estava e não é mais, abra asas de liberdade e voe para o novo, o diferente, o que não era e passa a conviver com você.

Assim, tendo a alma leve e o passo rápido, entre em um novo mundo de consumo e povoe sua casa, sua vida e seus afetos como um renascer. Isso tudo não deixa de ser um apelo imantado, irrecusável, embriagador.

Algo como a água de uma fonte de juventude e um eldorado existencial.

Coragem: deixe os vinis rodarem ladeira abaixo, ponha no freezer do esquecimento os presentes de casamento, as lembranças de viagens, os desenhos dos filhos-crianças, os livros que guardam pó e peso nas estantes, as imagens dos amigos da escola, da formatura emocionante, do primeiro beijo, ah, e os documentos com mais de cinco anos de emissão!

Crie um marco zero em sua caminhada, alivie seu coração dos afetos do bem, do remorso e da culpa. Ponha tudo em uma caixa bem decorada, feche com fitas e enderece para uma rua ladrilhada onde sua vida passou.

E voe mais leve e mais vazio.

 

Foto por Mauro Torres V em Pexels.com

Ex-pesos pesados ou A cultura vai aonde o povo está

Marta Morais da Costa

A professora Liana Leão postou uma mensagem no whatsapp no dia 24 de janeiro de 2024 reproduzindo a notícia saída no jornal com a seguinte manchete: “Busto de Nelson Rodrigues é levado do cemitério”. Seria irônico, se não fosse trágico.

Do mesmo Cemitério de S. João Batista em novembro de 2023 roubaram a estátua fúnebre de Cláudio de Sousa, outro dramaturgo, autor de “Flores de sombra”, fundador e um dos presidentes da Academia Brasileira de Letras.

O busto de Nelson Rodrigues pesava apenas 120 quilos e a imagem de Cláudio, mais de cem quilos. O teatro pesa muito.

Aliás, os ladrões devem ter, além de outras qualidades técnicas, uma boa capacidade de leitura: dramaturgo que escreva peças denominadas “A falecida”, “Viúva, porém honesta”, “Senhora dos Afogados” e um livro de contos “A coroa de orquídeas” deve estar pedindo para que os ladrões entrem no cemitério na ex-calada da noite (hoje todas as noites são do balacobaco) e satisfaçam a morbidez do escritor levando-lhe o busto de alto peso (o preço vai embutido) para aliviar seu – do Nelson Rodrigues – espírito mórbido.

Refiro-me aos títulos, porque, tenho absoluta certeza, os larápios não leram uma linha sequer da obra do autor. São os leitores que inferem dos títulos não apenas o enredo, mas a vida e a visão de mundo do escritor. Se tivessem lido algumas das obras do dramaturgo, conheceriam uma morbidez mais complexa, que ultrapassa a carne rota e poeirenta dos cemitérios e invade a alma de perversos e criminosos homens bárbaros. Mulheres inclusas.

Ao pó mais abjeto voltarão esses que desacreditam da arte, inútil em sua perquirição das almas, mas acreditam no vigor da alma bronzeada de míseros reais dos ferros-velhos, úteis para outros enlevos, estes, sim, mortais.

Cláudio de Sousa não teve melhor sorte. Começou sua carreira de dramaturgo escrevendo “Mata-a ou ela te matará” em 1896. E selou a sorte de sua imagem póstera mais de um século depois. Um título desses conduz mesmo ao cemitério! Escreveu um ensaio biográfico, “Os últimos dias de Stefan Zweig”, e agora, deveria voltar para escrever sua autobiografia póstera depois de mais uma morte simbólica na ladroagem da imagem de bronze de uma centena de quilos.

No entanto, diga-se a bem da verdade, Cláudio de Sousa fez e faz rir na maioria de suas dezenas de peças teatrais e em seus relatos e ensaios. E em “Flores de sombra” foi de uma delicadeza poética fascinante ao escrever sobre os infinitos enredos sutis do amor. Tivessem os ladrões lido suas obras entenderiam melhor o espírito galhofeiro dos cariocas e suas infinitas tristezas escondidas nas máscaras do carnaval e no exibicionismo carnal – futuro pó –  das praias.

O desaparecimento (e quem sabe, o derretimento) dessas esculturas de dois intelectuais brasileiros de destaque seja o retrato volátil e efêmero de uma desgraça brasileira da atualidade: o desprezo dos vivos pela história cultural e o menosprezo dos vivos com qualquer elemento, componente e/ou assunto que lembre de longe um palavrão dos mais reprováveis: cultura.

R.I.P.

155

Foto por Pixabay em Pexels.com

Marta Morais da Costa

 

155 gramas. Em dez dias! Já comecei uma das minhas eternas promessas de Ano Novo.

Cada subida na balança (equivalentes a um degrau médio) implica a perda de 0,0012 calorias. Passo o dia subindo, enraivecendo, me deprimindo e descendo da balança. Hoje, já perdi nela exatas 0,08 calorias.

Li recentemente no jornal (a leitura consumiu 0, 000002 calorias) que mais vale uma dieta com alimentos equilibrados e com qualidades nutritivas do que a contagem de calorias/dia. Sou fã número 1 da matemática – o que não me impediu de trabalhar a vida toda com literatura, só para contrariar os que dizem que preferem o curso de Letras porque detestam Matemática. Pobrezinhos! Ops, isto é preconceito? Se for, apaguem e substituam por “otários”. Dizia eu de minha preferência pelo conhecimento dos números e de seus raciocínios sofisticados. Portanto, vou continuar contando calorias, c.q.d.

Quando adolescente pensava que o mistério mais misterioso do mundo estava contido na sigla c.q.d. Naquele tempo heroico, c.q.d. significava “como queríamos demonstrar”. Nesses tempos  audazes,  eu me julgava uma matemática do porte de Descartes, Euclides e Poincaré quando usava esse verbo na primeira pessoa do plural. Totalmente incluída.

E olha que naquele tempo não entravam em sala de aula calculadoras nem o Google e muito menos a IA!!! Era tudo no célebro (sic), na ponta do lápis e no cuspe da borracha!

Meu professor de Matemática, fumante inveterado em sala de aula, vestido à moda de o-que- estiver-à-mão-eu-visto, meio desligado da vida real (depois dizem que isso acontece só com poetas), mas um bamba com equações de todos os graus, inclusive os da crise climática atual. Amável no trato docente e satúrnico na avaliação das provas. Temido e execrado por 98% das alunas. Um grande professor grande.

Aprendi com ele e carreguei pelo resto da vida: não sou capaz de ajudar a resolver a “Equação diofantina x³+y³+z³=k”, mas surpreendo comerciantes, balconistas e vendedores de seguros, e até gerentes de banco, porque uso a cabeça para resolver porcentagens, as quatro operações, frações e, se duvidar, até medidas de cortinas e terrenos. Só não consigo c.q.d. porque os professores ganham menos do que os juízes e os militares.

Meu médico endocrinologista estabeleceu, de forma descrente, o quanto eu preciso consumir de calorias diárias para perder 500 gramas ao mês. Dobrei a aposta e consegui, em longos 30 dias, perder 465 gramas! Calculo que no andar dessa carroça eu consiga celebrar meus cem anos pesando mais do que pesava no ano passado! Vou ficar devendo dietas e cálculos retumbantes para a próxima encarnação…

Por essa enrolação toda, quem me lê sabe que lá vem decisão existencial, daquelas que mudam o mundo e meu entorno. É isso mesmo: abdiquei de luxo e riqueza, abdiquei de joias e viagens, renunciei aos restaurantes estrelados Michelin, às churrascarias de rodízio pantagruélico, às confeitarias mais badaladas, aos menus de chefs cinco estrelas, às espigas de milho na praia e aos quilos de pinhão assado na chapa no fogão à lenha da minha avó (herança que minha irmã conserva e engrandece). Mas não renuncio à minha balança algoz: será a minha cota de contribuição com a purgação dos pecados do mundo.

Começando pelo maior de todos, a gula, que me adotou e tem me mimado ao longo de décadas. Afinal, ela me ama e me faz companhia. Na carência de bons sentimentos na crise humanitária atual, não dá pra desprezar um amor assim.

Neste novo ano, iremos as três – a gula, a balança e eu – carnavalizar 2024, enquanto as pernas e os pés aguentarem e o rebolado não acabar com os quadris.

Evoé, meu povo!