Mulheres na guerra

Marta Morais da Costa

Svetlana Aleksiévitch. A guerra não tem rosto de mulher.  SP: Companhia das Letras, 2016.    390p.

Livro contundente escrito pela autora ucraniana, ganhadora do Nobel em 2015. Ela realizou mais de quinhentas entrevistas com mulheres sobreviventes da Segunda Grande Guerra, principalmente oriundas da Bielorrússia e que combateram no exército soviético em tempos do Stalin. Alistaram-se no exército, na aeronáutica e na marinha com a intenção exclusiva de lutar no front das batalhas. Estavam motivadas principalmente pela ideologia de pátria e esperançosas de uma guerra curta, almejando sempre o dia da Vitória e a entrada em Berlim. Encontraram obstáculos entre seus colegas de farda, lutaram bravamente, inúmeras delas morreram em combate. Foram aviadoras, enfermeiras, médicas, nas comunicações e como partisans, manejaram metralhadoras, dirigiram carros de combate, tornaram-se competentes no uso de metralhadoras e de artilharia aérea, comandaram equipes femininas e masculinas. Exerceram, enfim, papeis relevantes na guerra contra os alemães em terras da então União Soviética.

Seus relatos e depoimentos são  reproduzidos no livro a partir de entrevistas gravadas sobre como se militarizaram, como era a vida no front, o amor, os filhos, o sofrimento, a família. Geralmente são jovens muito novas que entraram na guerra aos dezesseis ou dezessete anos. Muito sofrimento, muitas feridas internas e externas, um povo arrasado e faminto, cenas cruéis, a perda do feminino, o preconceito (inclusive das mulheres não-soldados que as acusavam de prostituição). Cada depoimento vem com o nome real e função que exerceu durante a guerra.

A escrita de Svetlana é quantitativa e intencionalmente limitada no livro. Mas o fato de ceder a palavra a mulheres extraordinárias não apenas acentua a realidade que viveram (e pela qual muitas morreram), mas acima de tudo torna o livro assustador, dilacerante, comovente e acentua a bestialidade das guerras e a capacidade humana de heroísmo e sobrevivência.

A narrativa está organizada em blocos temáticos e desvenda uma face oculta da guerra: a participação das mulheres. A diversidade de histórias e opiniões revelam o quão dilacerantes são as memórias da guerra, o quanto as feridas da alma são mais doloridas por vezes do que os ferimentos de guerra. O passado visto sob a ótica do presente e da velhice é uma história silenciada que, por força do trabalho de Svetlana Aleksiévitch chega aos leitores de hoje. Juntamente com as notícias atuais das guerras que acreditávamos jamais acontecerem. 

São mulheres sem redes sociais fúteis. Suas redes eram de solidariedade e crença na liberdade. Humanas, marcadas pelas armas e pelas perdas, mulheres partidas, precocemente envelhecidas, vítimas de tempos sem paz.

Peter Burke. Ignorância: uma história global.

Marta Morais da Costa

Estava eu posta em sossego aposentadorial quando li o anúncio do lançamento de um livro do historiador Peter Burke. O título veio ao encontro de uns pensamentos meus, meio mórbidos, sobre o assunto: Ignorância. Uma história global. Tornou-se imediatamente um sonho de consumo.

Traindo meu amor por livrarias, entrei no site proibido e catei esta maçã do Bem e do Mal, trazendo num voo de alcíone o livro pra perto de mim.

Não o devorei porque o prato é suculento, substancial, substantivo. Consumi aos poucos, até porque a quantidade de informações é para um banquete pantagruélico.

Cá esteve durante dias comigo o livro sobre a ignorância escrito por Peter Burke em edição de 2022 pela Yale University Press, traduzido por Rodrigo Seabra  e  pela editado Vestígio, com uma apresentação bacana de Renato Janine Ribeiro. Coisa fina, que só vem reforçar em mim o Sócrates de “Só sei que nada sei.”

Degustei, terminei, dei tempo para uma deglutição lenta – meu médico me ensinou que é como devo ler a vida. Hoje, desejo atendido, leitura assimilada, brotou a vontade de escrever sobre o livro.

O que posso dizer de um livro que tem a seguinte dedicatória? “Para os professores deste mundo, heróis e heroínas na tentativa diária de remediar a ignorância.” Não tenho razão de cair de amores por ele?

Ponho aqui o sumário do livro na esperança de fisgar outros leitores para darem vida a seus conteúdos.

Parte I: A ignorância na sociedade

  1. O que é a ignorância?
  2. Filósofos e a ignorância
  3. Ignorância coletiva
  4. Estudando a ignorância
  5. Histórias da ignorância
  6. A ignorância da religião
  7. A ignorância da ciência
  8. A ignorância da geografia

Parte II: Consequências da ignorância

9. A ignorância na guerra

10. A ignorância nos negócios

11 A ignorância na política

12 Surpresas e catástrofes

13 Segredos e mentiras

14 Futuros incertos

15 Ignorando o passado

Conclusão: o novo conhecimento e a nova ignorância

Peter Burke faz deste um livro daqueles que não nos deixa do mesmo tamanho intelectual ao seu término. Sua leitura conduz a verbos como aprender, ampliar, questionar. Os exemplos históricos são, ao mesmo tempo, informações, advertências e material para reflexão.

A primeira parte se responsabiliza por, didaticamente, conduzir o leitor pela mão para fazê-lo vislumbrar os campos vastos da ignorância e das intenções de mantê-la viva e acesa para disso tirar proveito. É um painel amplo e comprovado de que a ignorância não é somente desconhecer fatos e procedimentos em áreas do saber humano. Ela é, acima de tudo, um instrumento ideológico e um recurso de resultado quase seguro para reduzir o humano em nós.

A segunda parte, mais dolorida para a leitura e conhecimento, mostra, com minúcias, fotos e ampla bibliografia, o porquê de catástrofes que se abateram sobre povos e civilizações, bem como abre um amplo espectro de perguntas a respeito do que poderá ser o futuro à nossa frente. E até mesmo o quanto esse futuro pode ser retrógrado.

O Brasil está presente em vários momentos do livro e quase nunca com sua face “risonha e  franca”. Nada de futebol, carnaval e praias deslumbrantes.

Também não estão no livro apenas fatos de um passado milenar. Até a pandemia de SARS Covid 19 estende seu manto maléfico na forma do negacionismo da ciência.

Evitando intencionalmente dar um spoiler da obra, estas poucas palavras são antes um convite para a leitura, um convite para refletir e lutar nas hostes daqueles que, com ou sem diploma, educam, combatem por vezes com poucos recursos e forças a ignorância.

Sugestão de leitura:

Peter Burke. Ignorância: uma história global. Tradução Rodrigo Seabra. São Paulo: Vestígio, 2023.

Sugestão – Sobre literatura e afeto: uma entrevista

O tema é muito importante para as discussões a respeito de leitura e, em especial, de leitura da literatura. A indicação do vídeo selecionado levará o leitor para a entrevista feita pela professora Deisily de Quadros com a escritora, contadora de histórias e agitadora cultural Célia Cris Silva. O endereço é https://www.facebook.com/linguagensesociedadeunintergrad/videos/1107094956313703

Tive, enquanto professora da Universidade Federal do Paraná, a oportunidade de orientá-las em dissertação de Mestrado e tese de Doutorado e pude, nesse tempo, conviver com duas pesquisadoras entusiasmadas com a literatura para crianças. Deisily construiu seu doutoramento estudando a obra de Lygia Bojunga e Célia Cris concluiu seu Mestrado estudando os contos tradicionais, ditos de fadas.

A importância desses textos acadêmicos poderia restringir-se apenas aos assuntos tratados. Não para essas duas pesquisadoras: elas transformaram o aprendizado em carreiras sólidas dentro do magistério e dentro das atividades culturais destinadas à formação de leitores.

O vídeo com a entrevista mostra entre elas o que o tema da conversa preconiza: afetos originados e intensificados pela leitura e pela literatura. Há ao mesmo tempo uma franca corrente de familiaridade entre entrevistadora e entrevistada que confere um clima de conversa simples, à vontade e carregada de vivências pessoais. Circula no tempo da entrevista uma outra face: a transformação do prazer de ler em ações de intenso compartilhamento desse prazer. Seja na universidade – e em sua comunidade de professores e alunos, seja na sociedade em geral pela atuação com grupos de diferentes idades, recursos materiais e estágios de vida.

Para mim, tendo conhecido as duas pesquisadoras em fases de amadurecimento na área da literatura infantil, foi um enorme prazer de assistir a sua fala agora, senhoras do conhecimento, empolgadas com fazeres, à vontade com livros, leitores e literatura.

Por isso, recomendo fortemente este registro de um depoimento e de uma alegria por compartilhar a força da leitura da literatura.