Estação Islândia

Marta Morais da Costa

Ontem, 15 de julho, completei sem comemoração, silenciosamente, quatro meses de confinamento por causa do coronavírus. Espero que não faltem 36 outros meses para completar uma quarentena mensal. Para tanto, conto com minha resistência física – a cada dia mais desistência. Conto muito mais com a capacidade científica de pesquisadores, laboratoristas, médicos e cientistas que irão criar a vacina mais aguardada deste século tão refratário a vacinas igualmente salvadoras.

Quando me encerrei com marido, livros e tecnologias e uma despensa razoavelmente bem servida, imaginava uma quarentena italiana ou britânica, sabendo que jamais seria uma temporada neozelandesa. O Brasil sempre foi para a maioria de seus habitantes um desapiedado lar de horrores e decepções. Não deu outra.

Quarenta dias + quarenta dias + quarenta dias +…

As fases desse luto pessoal e coletivo ganham contornos cada vez mais trágicos e depressivos. A esperança, qual chama de pobre vela de sebo, vai derretendo em cada notícia, em cada boletim, em cada gráfico de derrotas. Lançar-se à rua representa o mesmo risco de vida daqueles marinheiros audazes em caravelas de casca de noz, entregues aos bons e maus ventos atlânticos, tentando chegar ao eldorado, mesmo que ele fosse uma floresta de pau-brasil. Muitos saíam e poucos chegavam. Retornar não era preciso, navegar, sim.

Mas eu quero retornar, não ao que já fui, ou ao que imaginava ser meu futuro, ou ainda ao que sonhava ser o Brasil, ou ao tipo de felicidade que desejava à família e aos amigos. Quero retornar ao menos para minha casa sem a companhia de coroas, gripes mortais, sintomas de síndromes de qualquer espécie.

Quero retornar à contagem das quarentenas e dos ansiados festejos  quando elas chegarem ao fim. Simples assim. Pequeno assim. Individualista assim.

Quarenta dias + quarenta dias + quarenta dias + UM.

Eis que no dia de hoje, o noticiário jornalístico me brindou com uma fresta de sol, uma flor no asfalto, um pássaro no pântano. A notícia vinha de longe, de uma terra que na imaginação vejo povoada de duendes, fadas, animais mitológicos e seres humanos dotados de couraças resistentes a temperaturas glaciais e paisagens brancas.

A notícia vem da Islândia, terra que evoca em mim toda a magia do desconhecido e a admiração pelas diferenças culturais e históricas de um país marcado por auroras boreais e pessoas tão mágicas quanto a Rainha da Neve de minha infância.

Bem que na Copa do Mundo de Futebol de 2018 somou-se a essa imagem idílica que tenho da Islândia a realidade de uma seleção nacional aguerrida, desafiadora e identificada ao mais sonoro, potente e inusitado grito de torcedores. Era a “haka dos vikings”, um bater de palmas ritmadas e com os braços estendidos, sincronizado em uníssono, acompanhado de um emocionante e exótico “uh” profundo, cada vez mais rápido e cada vez mais envolvente.

Era uma Islândia diferente, atraente, inusitada.  Ganhava uma realidade menos mágica e mais humanamente empática. Agora, uma nova surpresa.

A Agência Nacional de Turismo da Islândia oferece um serviço de recebimento de gritos gravados a serem lançados ao ar em regiões remotas do país. Em tempos de pandemia é o reconhecimento da necessidade de expressar, isto é, de colocar para fora toda a força de nossa angústia, de nosso desconsolo, de nossa desesperança, de nossa dor. Tal como o grito primal, uma espécie de terapia que esteve em moda nos anos 1970, criado e defendido  pelo psicoterapeuta estadunidense Arthur Janov. Para quem curtia e curte o Beatles, ele influenciou o casalzinho icônico John e Yoko, que saiu gritando (nem tanto) os benefícios do grito primal para externar todo desequilíbrio humano. O sucesso na música se estendeu à também banda britânica, Primal Scream. Ah, esses britânicos… A Rainha Vitória foi vitoriosa até além-túmulo: tanta compostura e repressão deu no que deu!

Pegando um Ita no Atlântico Norte, saindo do porto dos duendes, e descendo cá para o abençoado país de palmeiras e sabiás, pinheiros e gralhas, estou pensando em gravar uns quarenta gritos diferentes, enviar pelas renas de São Nicolau lá para o país das neves e esperar que eles levem aos picos nevados e regiões desabitadas todo o temor, o desamparo, a angústia, os encontros perdidos, os braços estendidos sem abraços, a distância dolorida, as perdas cortantes e a consciência de viver em uma sociedade que arrisca vidas por um rolê no shopping.

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