PAIS E PAÍS

Foto por Irina Anastasiu em Pexels.com
Olha, já estou roendo unha

A saudade é testemunha

Do que agora vou dizer

Quando na janela

Eu me debruço

O meu cantar é um soluço

A galopar no maçapê




(Roendo unha, de Luiz Gonzaga e Luiz Ramalho)

Sei que os números são criação humana e que o sistema decimal é uma convenção. Mas quando alguns algarismos se alinham com zeros à direita, como tudo ganha um formato diferente. Um sentido mais intenso. Uma noção de ciclo que finda ou que se inicia.

Assim foi com o ano 1000, assim vivemos em 2000, e agora sufocamos com 100.000.

Neste 9 de agosto, um Dia dos Pais à distância, seja por causa do confinamento com temores e esperanças, seja por causa do com fim dos que se foram sem a presença dos filhos que geraram, sem a presença da mulher com quem os gerou. Pais que deixam retratos, soluços e saudade.

Aos que estão ao alcance da voz, da imagem em telas, à espera da visita próxima no tempo e na distância, será um Dia dos Pais passível de adiamento, mas pleno das expectativas de abraços e beijos e olhos e carinhos logo ali adiante.

Dos que sumiram na aterradora dimensão da vida e que ultrapassaram o limite da existência ficou o perfume ácido da saudade, os rios sofridos que viajam  pela planície da ausência, a memória dolorida de momentos marcantes e de horas e dias fugazes, perdidos, não vividos em plenitude e agora desaparecidos para sempre.

É normal, previsto e fatal que um dia nos faltassem. Mas que tivessem o tempo de vida roubado e antecipado é imperdoável e incompreensível. Hoje mais do que nunca. Em especial quando o descaso de muitos, quando a prepotência de tantos, quando a insensibilidade de milhões conseguiram produzir uma chacina sem precedentes no Brasil.

Não há solidariedade, nem sacrifício de profissionais de saúde e nem equipamentos que estanquem a falta de ar, a falta de medicamentos, a falta de competência e falta de vergonha em quem poderia diminuir essa tragédia.

Um país que se esboroa, em frangalhos, poroso a todas as desumanidades e desumanização, fruto de pessoas que se dedicam de corpo e alma ao dinheiro e ao poder, crava dentes cada vez mais incisivos na carne de seus compatriotas, arrancando-lhes últimos suspiros a cada minuto do dia.

Pais, mães e filhos, em uma conta macabra, não cansam de preencher estatísticas, gráficos, murais de fotos e valas – milhares de valas – em todo o país.

Números redondos que possuem pontas afiadas a ferir de mortes simbólicas e afetivas a outros milhares de brasileiros.

Já existe quem diga que em três anos teremos esquecido a pandemia. Há quem diga que a vida normal deixará de existir. Há quem diga que nada se deve lamentar pois todos morreremos um dia, há quem diga que esses números são inflados por ideologia, há quem simplesmente diga se não for da minha família, tudo bem.

Na verdade, 100 000 brasileiros levaram com eles uma parte de nossa história coletiva, uma parte de nosso sentir solidário, uma parte da identidade deste país.

Deixaram para trás uma nova identidade que arreganha os dentes, que fuzila com o olhar e que distribui a mancheias doses letais de indiferença.

Pais ausentes que posam em retratos retorcidos de um pobre país.

 

Marta Morais da Costa