A ÁGUA É O MATRIMÔNIO DA HUMANIDADE

Dedico a Guilherme, meu neto,

 e Eliana Yunes, amiga de muitas águas,

aniversariantes.

Marta Morais da Costa

O título acima não é um erro gramatical ou de digitação. Não o inventei. Ganhei de presente de um colega, entre risos e pensamentos até inconfessáveis, em uma sessão de julgamento de redações há algum tempo atrás. Um (ou uma?) jovem vestibulando (a) usou a comparação para argumentar a respeito dos cuidados que devemos ter com a água, que esbanjamos como se fosse eterna.

Vivemos tempos de restrições e de seca, seja de movimento por causa do coronavírus, seja de racionamento de água. E desejar o paraíso de poder correr de um lado a outro, livres, ou de imaginar  a água a fluir em espaços domésticos e na natureza é parte de nossa utopia neste 2020 aziago.

O que passou pela mente jovem e entusiasta ao associar o termo usual (patrimônio) e a descoberta da concordância, segundo seu entender, indispensável entre o sujeito da frase e seu predicativo? A água é patrimônio soa desconforme. Patri- é herdeiro de pater, pai, masculino, impeditivo, normativo, obstaculoso e obstaculador. A água fluida é mais o sentimento feminino, a adaptabilidade, a fonte e a origem. Ao mesmo tempo, é conjugação de componentes: H2O é fórmula geminada, dupla, conjugada.  Combina  melhor com matrimônio.

Lembro versos de Drummond em Menino antigo:

O Pai é imenso. A Mãe, pouco menor.

Com ela, sim, me entendo bem melhor:

Mãe é muito mais fácil de enganar.

(Razão, eu sei, de mais aberto amor.)

Lembro também Adélia Prado e sua conclusão imperiosa de que “Mulher é desdobrável”. Revejo na memória de leitura todos os poetas da água, desde o Amazonas caudal e misterioso de Cobra Norato, de Raul Bopp, à água que banha Manaus dos romances de Hatoum, as águas profundas e simbólicas de Grande sertão: veredas e a viagem pantaneira de Manoel de Barros, bem como as águas sulinas de Breviário das terras do Brasil, de Luiz Antônio de Assis Brasil e Os rios inumeráveis, de Álvaro Cardoso Gomes. Todos esses (e muitos mais) caminhos de água doce por onde viajam e cruzam as embarcações que carregam origens e brasileiros de todos os tempos.

Foto por Pixabay em Pexels.com

A mãe e as águas. A mãe das águas: Iara, a que deseja, atrai e mata. A mulher matrimônio.

São tempos de queimadas e de assassinato da natureza neste Brasil de meu Deus, que costumava ser dadivoso e compartilhável, e que se transforma dia a dia, por incúria e ganância, no deserto de “tenebrosas transações”, como Chico Buarque advertiu.

Voltando à descoberta juvenil, pode ser que a receosa e tensa candidata (imagine aqui, leitor, também as formas masculinas) a uma vaga na universidade não tenha feito nenhuma dessas associações. Mas esta leitora que aqui escreve, sim. A analogia tomada por outros colegas leitores enquanto erro ou manifestação de incapacidade linguística, pôde provocar em mim outra interpretação. E indagações.

A mãe-matrimônio da humanidade também pode ser considerada a linguagem verbal, oral ou escrita, pois permite ao leitor fecundado criar, por sua vez, e disseminar sentidos, valores, belezas, enganos, ilusões…

O livro-útero, cuja água placentária envolve o leitor e na qual ele experimenta e aprende a reconhecer a autoimagem (borrada, deformada, cruel ou prazerosa) em vivência solitária num primeiro momento.

Que mistérios e belezas esconde a língua nesses encontros inesperados? O quanto pode criar o leitor a partir de textos sem intenção estética? Freud acena com os achados dos lapsos inconscientes e o leitor deleita-se com a busca dos processos analógicos e das razões (conscientes) que originaram as imagens reveladoras.

O leitor, essa figura metamórfica e plural, arredia, desconfiada ou apaixonada – e entregue -, mas sempre em busca de uma parcela de identidade em cada livro lido. Identidade que foge, como correm as águas dos rios.

Em O último leitor, o ficcionista e professor argentino Ricardo Piglia escreveu estudos sobre autores (Borges, Kafka, Tolstoi e Joyce) além de estudos sobre leitores. O prólogo trata de um fotógrafo, que “diz que se chama” Russell. Ele constrói uma maquete, antes uma “máquina sinóptica” da cidade de Buenos Aires, fruto de sua interpretação da cidade “que era mais real do que a realidade, mais indefinido e mais puro”. Piglia, citando Pound, reafirma que “a leitura é uma arte da réplica”. A tentativa de compreender e o fascínio pelo que se consegue apreender do que se lê, tornam a nós, leitores, seres replicantes.

Esta crônica tem a ver com o desejo de replicação, maternidade torta em busca de continuidade, enraizada na frase desajeitada do tenso e esperançoso vestibulando (leia-se aqui sua versão feminina também) e no entusiasmo pelo texto denso de Piglia, a procriar sentidos em mim.