Instantâneos na casa de Antenor

Foto por George Becker em Pexels.com

Marta Morais da Costa

Antenor está empregado numa fábrica de móveis. Seu trabalho consiste em cortar  e lixar a madeira para a fabricação de móveis. Telefona para casa no meio do expediente. Lúcia está na cozinha, preparando o almoço dos filhos. Ao ouvir o telefone, assusta-se. Confere as horas e pergunta-se quem poderia ser. A voz de Antenor a deixa mais assustada ainda. Ele diz que não está se sentindo bem e que vai ao médico.

De imediato, histórias de acidentes, infartos, derrames enchem a cabeça da mulher. Pede a ele que telefone avisando o que o médico vai dizer e que venha para casa o mais cedo possível, para deitar, descansar e recuperar-se. Ele concorda e desliga o  telefone.

Lúcia volta à cozinha. Agora os preparativos ficam mais difíceis. Nem enxerga bem as recomendações das embalagens,. Troca as louças de lugar, sem saber bem o que quer fazer com elas. Desliga o rádio: as palavras do religioso, a falar de pecados e de Jesus agora não fazem muito sentido. Sente falta do sal para temperar o alimento. Mas havia esquecido de anotar na lista de compras do supermercado. Nervosa, toma o telefone para falar com a vizinha: quem sabe consegue um pouco de sal. Mas não lembra o número. E as crianças devem chegar logo da escola… Um cheiro desagradável chega a suas narinas. As batatas! Agora, precisa inventar outro prato. Quem sabe não vai lembrar alguma receita rápida? Na rua, o frear do ônibus anuncia a chegada dos filhos.

Valdelúcia entra em casa disposta a ir imediatamente ao quarto, largar sobre a cama os materiais do cursinho e telefonar para o namorado, desmarcando o encontro da tarde. A prova do ENEM no final de semana está lhe tirando o sono, a fome e o amor. Precisa garantir boa nota para tentar o vestibular da universidade pública. Seu pai não pode arcar com mensalidades de uma particular. Anda assustada com a redação: soube de alguns exemplos ridículos que o professor ironicamente comentou em sala. Não quer dar vexame. Na cama, continuam espalhados os livros que havia consultado de manhã bem cedo, antes de sair. Separa os que trouxera da biblioteca, põe sobre a mesa de estudos os CDs de música emprestados pela amiga, e voa para o telefone no corredor perto da porta da rua.

Lucas dá um beijo distraído na mãe, larga os livros no meio da sala, deita-se no sofá e liga o televisor. Seu desenho animado preferido já vai pelo meio. Em nada diminui, no entanto, o interesse e curiosidade do menino. Entre um efeito especial e a sonoplastia adequada aos socos e explosões que pipocam na tela, tira o material da mochila e de barriga para baixo, a maior parte do tempo com os olhos no televisor, lança olhadelas nas páginas escritas e reproduz nos exercícios o que a professora havia explicado durante a aula. Sua pressa em terminar os exercícios se justifica: mal engolido o almoço que se anuncia pelo cheiro apetitoso que vem da cozinha, sairá a brincar com Felipe, da casa ao lado. Bola e videogame encherão a tarde e o tempo vai escoar rapidamente. Lúcia, da porta da cozinha, olha o menino, orgulhosa pela dedicação que o filho dá aos estudos: nem almoçou ainda e já está mergulhado nos livros! Este menino vai ser médico, no mínimo!

O almoço está na metade quando Antenor chega. Traz o semblante abatido. Queixa-se de fortes dores de cabeça. O médico não descobriu a causa, mas lhe receitou vários remédios, de nome difícil, mas que, segundo o doutor, o deixariam curado. Bem que tentou guardar as palavras do médico explicando o modo como tomar os remédios. Era uma conversa de colheres e horários. Pelo menos, o médico havia escrito tudo. Poderia ler quando precisasse, pensou Enquanto se prepara para almoçar, pega a receita. A letra é um garrancho só. Vai ter que telefonar ou passar novamente no consultório para ouvir as explicações. Não é só isso que o incomoda: pensa no dia de trabalho perdido. Havia sido tão difícil conseguir aquele emprego! Não poderia perdê-lo agora! Trabalha muito e espera uma promoção para breve. Até está  buscando aprender um pouco mais. Valdelúcia o ajuda e lhe traz algumas informações, tiradas da biblioteca e de uma tal interné. A dor de cabeça aumenta. Deita-se, fecha os olhos e fica a ouvir os barulhos da casa, em plena tarde.

Enquanto Antenor tenta acalmar a dor e a angústia, Lúcia liga o rádio para ouvir o programa de fofocas sobre artistas de televisão; Valdelúcia estuda no quarto, muda com lentidão as páginas da apostila por causa da dificuldade em compreender as idéias das frases; Lucas joga futebol alegremente e de vez em quando atravessa o gramado da praça em busca da bola, muito próximo da placa em letras vermelhas e exuberantes: NÃO PISE NA GRAMA.

Na lida diária dessa família, futuro é apenas mais uma palavra abstrata. Talvez vazia.