Máscaras

Marta Morais da Costa

Foto por Jou00e3o Pavese em Pexels.com

Versão Céu Estrelado

Em 13 de março de 2020 entrei em quarentena. Como eu, milhões. O que nos recolheu foram algumas esperanças e um só medo: o de morrer sem preparação.

Entre as esperanças viviam um “vai passar”, “serão três meses no máximo”, “ a solidariedade é a palavra do momento”, “haverá um novo normal, passada a epidemia”.

Aos poucos fomos perdendo o receio do pior: bastava ficar recolhido, sair tomando cuidados básicos: distanciamento, máscara, álcool em gel. Passamos um pouco de dificuldade no início: tudo era muito diferente. A falta da vida normal de saídas, encontros, conversas, longos abraços doeu um pouco. A certeza de que estávamos ajudando a salvar vidas, a manter o vírus afastado, a não piorar as estatísticas, acendia a luz da cidadania.

Textos nas redes, telefonemas, oferta de auxílio (em especial para os quarentenados idosos), um desejo de ser solidário (muitas vezes o desejo transformado em ações), podcasts, lives, mensagens de otimismo, muito coraçãozinho e fotos lindas da natureza, de festas antigas, de viagens de sonho. Isso tudo foi acalmando a ansiedade, diminuindo o medo, acomodando nossa vida a um retiro cujo final era luminoso.

As notícias sobre vacinas começavam a ocupar o espaço em noticiário e a produzir imagens de salvação dentro de nossa voluntária solidão. Aprendemos a ter paciência, a minimizar problemas, a rever valores e comportamentos. Ficamos mais próximos de nossos próximos e mais senhores de nós mesmos.

Dedicamos o tempo a tarefas que relegávamos a outrem ou novas ações e atitudes. Aprendemos línguas estrangeiras, lemos mais e outros livros, assistimos a filmes de todas as categorias, colocamos ordem em horários, coisas e rotinas domésticas.

Nossas casas ganharam efetivamente o sentido de lares: proteção, companheirismo, boas práticas de relacionamento, um “vamos junto” até que a covid nos separe. Mas resistimos, vivemos mudanças que reconhecemos temporárias. Talvez sobrevivam em tempo sem quarentena. Talvez não.

É verdade que os divórcios aumentaram, que as crianças perderam aprendizagens, que os projetos para o Ano Novo foram destruídos e que a balança foi impiedosa com o sedentarismo obrigatório. É verdade que a cidadania (antes uma miragem) mostrou sua face de verdadeiro deserto sem fim, cruel, impiedoso, canalha. Mas hoje até relevamos essas dificuldades porque a proximidade do dia de vacinação apagará todos os pecados.

Afinal, um ano não vivido na integralidade é muito pouco para a sobrevida que acreditamos estar logo à frente.

Corremos sem sair do lugar e aquartelados entre a porta de entrada e a sem saída, aguardamos que nossa obediência e nossa reclusão (com toda sua carga de sacrifícios) nos mantenham vivos até a liberdade, ainda que tardia.

Esperamos a luz no fim do túnel, antes que ele se feche.

Foto por Francesco Ungaro em Pexels.com

Versão Raios e Trovoadas

Em 13 de março de 2020 entrei em quarentena. Como eu, milhões. O que nos recolheu foram algumas esperanças e um só medo: o de morrer sem preparação.

Entre as esperanças viviam um “vai passar”, “serão três meses no máximo”, “ a solidariedade é a palavra do momento”, “haverá um novo normal, passada a epidemia”.

A epidemia virou pandemia, três meses se quadruplicaram. O medo se tornou um item do cardápio diário. Toda a vida foi trancada em um quarto escuro, guardado por um pitbull e fechado a cadeado.

Os safados e os sacanas de sempre atacaram e destruíram o que apareceu pela frente. Continuam a agir diante de nossa passividade e covardia. Descobriram que o medo é o senhor da razão. Colocaram sem pudor na vitrina sua crueldade, indiferença, ganância e insaciável cobiça.

O novo normal veio em forma de deboche e despreparo. Toda incompetência e arrogância conheceu a luz, despudoradamente.

Veio a ciência com seu discurso meia boca e meia cara. Existe vacina, mas não para todos. Existe conhecimento, mas não para todos. Existem saídas, mas… Afinal, a ciência também é humana, feita por quem se cansa e por quem desiste.

Quem sabe a fé. Deus provê. Enquanto uns oram por seus mitos, outros rezam por seus mortos. Os agnósticos riem esfíngicos. Ao menos não descreem em vão.

A quarentena se transformou em trecentena e como a pilha de mortos, não cessa de crescer. Empilham-se os dias e sonhos e ânsias de liberdade. Para os tolos. Os espertos sempre continuam a vida normal, descuidados, debochados, inconsequentes, carpindo os dias para sai e a noite derradeira para os outros.

O novo normal é a revivescência da barbárie. A solidariedade é  o encontro virtual, o que se deseja com a certeza de nunca realizar.

Um ano se vai em um país pindorâmico de um anão anestesiado que sonha um abortado futuro. Não terra brasilis, sed terra ignorantis.

Hoje, com futuro encolhido e regressivo, em um quarto com janela gradeada, de onde se vê o horizonte e as flores, e de onde só sairemos em direção ao porão.

Depois de um ano, colecionamos virtualidades. O mundo dos robôs já chegou. Nossa convivência é com máquinas. Não com gente. As lives são pessoas bidimensionais, como em canais interativos. Não com pessoas diversas, mas com inimigos transmissores, que também nos olham e nos consideram inimigos.

Uma sociedade acuada pelos lobos famintos, agressivos e solidários apenas com sua alcateia.

Uma sociedade ameba, enclausurada, a implorar por vacinas e pela velha normalidade. Desejando apenas continuar a ser sobrevivente, já que a vida se restringiu a paredes, ilusoriamente transitórias.

O novo normal, se chegar, será árido por fora e ácido por dentro. Uma sociedade obrigatoriamente adoecida, em que o riso é um esgar e a voz, um sopro.

Não existe vacina para a assustadora descoberta do Mal e para a devastação interior.