
Marta Morais da Costa
É a hora desperta de mais uma noite de insônia. Diante de mim na mesa de trabalho o monitor do computador, o teclado, a impressora e a parafernália de cabos e fios que se embaraçam, tornam os espaços cada vez mais restritos, a desenhar roteiros próprios sobre o tampo da mesa, a escorrer aquáticos e negros pelas bordas e quinas.
Um cenário típico e sem surpresas do presente laboral de uma escriba.
Os olhos inchados repousam sobre o teclado. Nesta madrugada estão espertos. Os indícios de utilização incessante ganham inusitado relevo. Só então repara no desaparecimento e, em alguns casos, no quase apagamento da tinta branca que facilita o reconhecimento das teclas.
Sem dúvida, a pintura das letras não é de boa qualidade, dialogo-me interiormente. Ou será que a primeira explicação nasce do autoengano de atribuir culpa a outrem?
Melhor, penso: talvez o uso constante tenha corroído algumas teclas. Investigo as pistas da persistente escrita. Estão invisíveis o A e o E. Semidesaparecidos os desenhos do I e do O. Mas imperturbável, inteiro, quase novo: o U.
A língua portuguesa é realmente uma pauta sonora colorida, clara, de cantos solares de estio. O lúgubre U e suas propriedades invariantes, sem tons e semitons, o deixam pouco tocado. Os dedos irão pesar em outras combinações da partitura. Assim os As estupendos em claridade e combinações com acentos, nasais e tônicas. Como o E e o O, abrindo-se em brados de trompete ou fechando-se em lamentos saxofônicos. O I vibrante despertando olhos e ouvidos para sua esbelta agudeza, para os alertas de ironias e desatinos.
A vocalidade da língua falada e escrita no Brasil, despudorada, sem segredos, difere das oclusões e esconderijos da fala de Portugal. Nossa tropical alegria e malemolência e nossa tropical lentidão ecoam na fala que acompanha os dedos tamborilando o ritmo ralentado da enunciação.
E as consoantes?
O maior número delas suporta melhor o apagamento da identidade dada pela tinta. elas dividem o peso das palavras a sustentar-se ora sobre umas, ora sobre outras. As mais enfraquecidas e quase invisíveis são as teclas R e S: a sibilante e a vibrante, a manifestarem as contradições deste país-continente. Entre sussurros e arroubos, juntos ou separados, vão descrevendo nos sons nossas mazelas adolescentes.
Outra dupla siamesa, o M e o N, contribuem para nasalizar o veludo de uma língua em tom menor, amaciada pela história de um povo dito pacífico e quase de joelhos. O povo do jeitinho, das fugas, dos esconderijos e da impunidade.
A letra D perde sua redondeza e cria ângulos quase explodindo no T, como a querer cortar as ligações prepositivas de, dos, das, dum, duma e a esgarçar relações, deixando-as soltas na frase. Pão Açúcar, casa seis milhões…
Surpreende-me a tecla SHIFT, que no seu orgulhoso anglicismo, me leva a pensar que ando exagerando nos nomes próprios, nos títulos e quiçá nos Absolutos e até no egocentrismo do meu nome espalhado em tudo o que escrevo.
Nesse devaneio tecladista e linguístico, me impressiona sobremaneira a limpidez, a visibilidade e o pouco uso da interrogação. A tecla que a identifica brilha soberana no teclado. Ando assertiva demais, concluo. Onde estão olhos e atenção para os ???? da vida e do meu tempo?
Com urgência meu pensamento precisa reaprender o caminho das perguntas e ordenar ao mindinho direito que tecle o quê, quem e por quês deste tempo presente trágico.