Urbanismo

Marta Morais da Costa

Da janela do apartamento, ela era visível na esquina do outro lado da rua. Nem os moradores mais antigos sabiam quem a havia plantado, ou quando. Talvez fosse uma remanescente de antigo bosque, arrasado para que casas e prédios surgissem no local.

Foto por Felix Mittermeier em Pexels.com

Ela significava o melhor antídoto contra a rotina, a pressão do trabalho, a consciência da morte. Eu e ela nos olhávamos, companheiras, ao longo do dia. Uma festa de diferentes sensações. Ver a dança suave dos galhos ao movimento da brisa ou frenética no tempo da tempestade. Admirar o brilho do sol em milhares de pontos de luz em suas folhas. Sentir a sombra protetora em dias de canícula. Acompanhar as cores cambiantes seguindo o  movimento do sol e das estações, tal um Monet vivo, urbano e intermitente na afirmação de sua maturidade.

Ela dominava majestosa a esquina de ruas que talvez nem existissem em sua mocidade. Mas casas e edifícios trouxeram pessoas. Pessoas trouxeram seus automóveis e a esquina trouxe um cruzamento de muitos acidentes. Este foi seu decreto de morte.

Como nas histórias, um dia – nada belo – chegaram os caminhões com seus operários e motosserras. Caíram primeiro os galhos mais altos, mais jovens. Em sua indesejada nudez, o tronco não dançava, nem brilhava, imóvel em cores e espanto. Esquartejá-lo foi questão de horas.

No lugar onde outrora existira uma imponente chau-chau, restou a ruína de uma saliência na calçada.

Na esquina, agora sem obstáculos visuais, os acidentes de trânsito continuam a acontecer.

3 comentários sobre “Urbanismo

  1. Valdir Moreira da Silva

    Profa. Marta. Tenho me deleitado em ler seus escritos. Esse fez-me lembrar de uma árvore de minha infância – acho que quase todo mundo tem uma árvore da infância. Se não a têm, deveriam ter, todos. Ela era torta, era conhecida como a Árvore Torta; dava nome a um sítio, inclusive, porque ficava na entrada, na porteira da propriedade. Seu tronco tortuoso atravessava a estrada estreita, uma inóspita estrada, lá pro outro lado. Uma vez, um caminhão precisou passar – nunca passava caminhão ali. Dar a volta por outra estrada era longe, então esquartejaram ela, como essa que você narra. Pelo custo de alguns litros de diesel a mais, aquela senhora majestosa foi humilhada, depois derrubada, e depois picotada. Ficou o tronco, o cepo, o toco que, por muita teima, brotou e, hoje, é uma árvore de novo. É nova, mas é a mesma porque, prudente, é reta como mais não poderia ser. Obrigado por me possibilitar relembrar…

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  2. Muito bonito. Me dói o coração ver que urbanismo e concreto é retrato de progresso e paisagem, floresta, verde é visto como mato que pode ser capinado.

    Precisamos urgentemente mudar esse conceito de vida e trazer a Terra pra perto, nossa Pacha Mamma solo sagrado.

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