Tempos de Van Gogh

Marta Morais da Costa

Foto por Efdal YILDIZ em Pexels.com

Caros leitores, preciso alertá-los: o título desta crônica pode induzi-los a erro. Se vocês esperam um texto curto sobre a obra desse magnífico pintor, ficarão frustrados. Se, ao contrário, acharem que é presunção desta cronista querer em parcas e frouxas linhas abordar a obra de tão magnífico pintor, estarão duplamente certos: a cronista é fraca e o texto será sempre insuficiente, com poucas ou muitas linhas. Se vocês pensarem “lerei um panorama em voo de drone sobre o período histórico (magnífico!) em que viveu o magnífico pintor”, terão sido igualmente iludidos por uma crônica cujo título não corresponde ao conteúdo.

Para que não me acusem de usar o nome de tão magnífico pintor em vão, passo rapidamente a esclarecer um título que, confesso, é tão e muito pretensioso.

Um quadro de Van Gogh arremessa (assim mesmo, com violência) o espectador em um nebuloso mundo de torções (figuradas e imaginadas) de um espírito especialmente contorcido. Espectador-passante é tomado de abrupto pela mão que acorrenta o olhar num abismo de cores e curvas e linhas e dimensões arrebatadoras e provocadoras: o mundo e suas paisagens incitam mergulhos em razão e sentimentos convulsionados e convulsionáveis. O magnífico pintor faz do olhar de conforto, da arte de conforto – de qualquer conforto – rotos trapos, fiapos de conhecimentos prévios em derrocada, conduzindo a caminhos desconhecidos para um mundo também ele em convulsão.

A fórceps retorno à realidade de meu tempo, saio da arte para a natureza, desligo-me dela para um sobrevoo em textos nada perenes de um mundo convulsionado que amanhã oferecerá mais distorções, mais sangue, mais decepções e, provavelmente, mais espinhos transfixantes em meu desejo de ver pessoas vivendo em dignidade e em mútuo apoio.

O outono, versão idosa da primavera, não tem as cores vibrantes de Van Gogh – amarelos, azuis, verdes pujantes – mas é maravilhoso em seus tons alaranjados, marrons e verdes recolhidos. O sol outonal tem poentes indescritíveis em seus tons de saudade e carícias no pouco calor que amortece o dia, resfriando as noites de luares entre nuvens. O outono contém em sua expressão natural um rito de aquietação, de aceitação do inverno que se aproxima. Ao mesmo tempo, mantém o fio da esperança de ainda longínqua, mas previsível, primavera.

Gosto dos meio-tons outonais, do colorido que mistura o atrevimento e a decadência, o anúncio da claridade com a neblina, a chuva que traz o frio e o frio que se aquenta ao sol tímido, as flores a viver à beira do desaparecimento, as folhas que se recusam a cair em definitivo, as sombras que encurtam os dias. Outono sou eu, quase inverno, prestes a desaparecer.

Essa beleza incontestável de um tempo natural adequado ao ritmo das estações e da vida encontra sua desestabilização nas ações humanas.

Em um país cuja violência, tão frequente que deveria estar explícita no dístico da bandeira brasileira, outono ou primavera serão sempre tempos de conflagração. Não importa o calendário, tão desrespeitado quanto as leis: vide o carnaval desestabilizando para pior a marcha regular da natureza; vide o desassossego instaurado por falanges infratoras no que poderia ser o momento de retomada da vida após a cruel pandemia. Uma sociedade esmagada novamente em seus projetos de futuro por condições econômicas vividas como flagelo e causa de desumanidades. Neste país, o outono mais plácido (em tuas margens plácidas, ó Ipiranga!) é convulsionado pela fome e pela ambição, a revelar os piores estados de espírito, da poltronice à selvageria. Uma espécie de Van Gogh desvestido de arte, a causar não o impacto da beleza, mas o estupor da imbecilidade da humanidade degradada.

A Ucrânia devastada, a democracia rebaixada aqui e alhures, a emigração forçada, a degradação dos valores humanos, uma sociedade falseada, virtual e de avatares.

Estou mesmo outonal: a convulsão da arte de Van Gogh saiu dos olhos e da mente. Chegou-me ao coração em forma de profunda descrença. Talvez sem primavera.