ZUMBIDO

Marta Morais da Costa

O zumbido havia se transformado em pesadelo. Começara mansinho, como um chuvisco seco, muito distante. Aos poucos havia ganho corpo, peso e estridência. Em momentos imprevisíveis emitia silvos ensurdecedores.

Médicos, havia consultado seguindo, um a um, toda a lista do catálogo do plano de saúde. Alguns consultórios modernos e bem equipados e outros, a maioria, nem tanto. Diagnóstico? Mudava mais do que o tempo no outono, Estresse, surdez chegando no horizonte, uso excessivo de fones de ouvido, problemas nos rins, no esôfago, no labirinto. Talvez um câncer.

De consultórios a laboratórios, o tempo passando, o trabalho no escritório beirando o caos, a conta bancário minguando, o patrão reclamando e a mulher, já desamorosa, tu tá é com manha, querendo nem trabalhá.

Em 45 dias, estava no olho da rua, sem mulher, sentindo pegajosas as caras de consternação e compaixão de parentes e vizinhos.

O zumbido agora orquestrava. Graves e agudos, colcheias e semi, uma disputa acirrada com o canto dos pássaros e a grita da criançada. Ouvir música parecia um dueto desafinado e em ritmo descompassado.

Certa noite, vozes indistintas travavam conversas intermináveis que começavam no vestíbulo do ouvido e só silenciavam nos escaninhos do cérebro. Alguns dias mais e as vozes altercavam com risos e assobios.

Evitava sair à rua: confundiam-se os sons dos automóveis com o roncar de algumas vozes sonolentas. Temia ser atropelado e, se sobrevivesse, saber que havia incorporado sons de freadas e ranger de rodas.

Surpreendeu-se um dia prestando atenção no diálogo entre as vozes interiores e saber que trocavam informações e prognósticos sobre sua pessoa. Ah, o Alfredo está achando que não existimos, que somos ruídos em seus ouvidos. Deixa o bobo pensar assim; de todo modo ele não vem nos perturbar. O tonto pensa que é doença: sabe nada. E as vozes altercavam-se e criavam novas avaliações sobre ele.

Em cada dia riscado na folhinha, debates e acusações, risos de escárnio e prognósticos de aniquilamento. Ele ouvia tudo e nem duvidava. Estava mesmo vivendo mais os outros dentro de si do que a vida pulsante fora de sua cabeça.

A batida na porta tirou sua atenção da interioridade. A bela mulher que o mirava do outro lado da porta aberta só queria algumas respostas ao questionário sobre a relevância de se construir um shopping nas imediações.

Os olhos negros, no entanto, lhe pareceram familiares. Talvez uma amiga da ex, talvez uma passageira do metrô do tempo em que trabalhava, talvez alguém da televisão.

– Senhor Alfredo, como vai o zumbido? Melhorou com as vozes? Nós somos mesmo muito tagarelas, não?

Lá dentro, no fundo do cérebro, uma voz se fez ouvir:

– Irene, volte para casa! Deixe de brincar de pesquisadora!

Foi então que descobriu: o zumbido jamais partiria. Era agora sua anulação.

Ele se perdera nos outros.

Foto por Suzy Hazelwood em Pexels.com

Contos em mim menor

A escrita do conto dialoga com a variedade dos gêneros literários. Pode conter a concisão e musicalidade dos poemas, o diálogo e a ação do teatro, as personagens complexas dos romances, a filosofia dos tratados, o humor da linguagem carnavalizada, os temas e contraditos da realidade, a veloz e cotidiana comunicação do jornalismo, as relações éticas e emocionais da psicanálise, e os mitos ancestrais em roupagens atualizadas. Enfim, um conto é a vida em movimento, acondicionada em embalagens econômicas.

Contos em mim menor é livro quese fez de leituras, observação, memória e imaginação. E pretende se inserir nas dobras da tradição milenar do escrever para narrar histórias de personagens comuns, de momentos especiais, de acontecimentos ímpares. É uma antologia pautada pela diversidade. Por vezes se aproxima do relato realista, em outras demanda parentesco com a poesia. As personagens aproximam-se dos leitores, mas por vezes se colocam distantes para serem observadas e analisadas. A linguagem narrativa é envolvida pelo coloquial, sem dispensar a presença do termo incomum, da frase tortuosa, da ironia ferina ou do humor revelador.

Esta coletânea metaforiza-se no vidro: os grãos minúsculos da areia formando uma liga poderosa e múltipla. O vidro que protege, torna transparente, reflete impiedosamente, envolve ou estilhaça-se em cacos: corta, fere, expõe entranhas.

Com defeitos e plenitude, Contos em mim menor realiza uma literatura de grãos de areia, de vidros e de espelhos.

Transamazônica

Marta Morais da Costa

A proximidade do início da primavera lhe trazia uma sensação de fragrância florais, brisas instáveis ao sabor do passar das horas do dia, a expectativa de melhor humor e passeios tranquilos à luz do sol de raios amenos.

Mais do que isso: mal se anunciavam os tons róseos da manhã, já estava às voltas com o aguar das flores, a sensação de um novo e promissor dia de vida e os preparativos do café a dois, silencioso, mas cheio de pequenas atenções.

Só que não.

Os olhos foram o primeiro alerta: secos, doloridos, como se mergulhados em areias desérticas. Logo a respiração perdia sua leveza quase imperceptível para ganhar arquejos de pouco fôlego.

A janela do apartamento deu o alarma: o horizonte perdia a limpidez para acinzentar, embaçar e quase esconder a linha do horizonte. A noite parecia sofrer para ir embora e permanecia em surda batalha com as margens do dia.

A imagem idílica de amanheceres em poética quietude embaçava-se igualmente. A rinite tomou conta de sua respiração e de seu dia, que começava se liquefazendo em rotinas de cuidados e socorros. Os anúncios do corpo eram de incômodos e mal-estares.

Entre a surpresa e a ansiedade, o olhar lançado ao exterior através da janela do quarto foi ganhando mais compreensão: a linha cinzenta era mais espessa e mais alongada do que a cotidiana poluição. Trazia em sua cor mais definida uma pressuposição de ameaça.

Pelas frestas de portas e janelas o velho novo monstro insalubre trouxe as sobras da natureza em combustão. O ar monoxidal, carbonífero carbonizador, espalhava o mal-estar, furava pulmões em agressiva invasão, tomando posse de espaços, telas, corpos em absorção ingênua, movimentando formigas humanas sem proteção pelos caminhos de hospitais, clínicas, enfermarias e sofrimentos.

Entre lágrimas e coriza, ela padecia a asfixia de um tempo e uma sociedade agora desvalida por força de suas inconsequentes atitudes de descaso e desleixo.

Plantas e troncos, bichos e águas, envoltos em fogo e fumaça apontavam dedos carbonizados para assassinos Neros a tocar não harpas, mas fósforos e isqueiros em combustíveis.

Enquanto isso, prisioneira do horror, ela sonhava umidades e verdes, cada vez mais distantes e imaginários. E ela contava para ninguéns a bucólica narrativa, versão pastoral, de camponeses cantando em versos aos sons de flautas, a natureza risonha de “verdes mares bravios” de uma terra de palmeiras, embelezada pelo nome sonoro de Pindorama.

Enquanto isso, chegavam notícias de acordos e conchavos protelatórios, cozidos em negociatas ao fogo de agonizantes árvores e cerrados, em crepitações eleitoreiras.

Criavam-se os sulcos de nova e flamante transamazônica viajando em um sinistro corredor de fumaça.

Chaves

Marta Morais da Costa

Foto por George Becker em Pexels.com

Depositou o chaveiro sobre a mesa. Não porque fosse deixá-lo à vista para não perder. Não porque fosse um peso a menos no bolso. Também não para demonstrar propriedades a que pudesse acessar diretamente. Talvez para demostrar a ela sua condição de proprietário, de posses garantidoras do futuro, de acesso a muitos lugares todos seus ou sob sua responsabilidade. Duas chaves podem abrir poucas portas: dezenas delas abrem portas de respeitabilidade e poder.

Distraidamente ela passeou os olhos sobre o molho de chaves. Fixou-se no chaveiro, uma gasta tira de couro com argolas, que reuniam diferentes tamanhos e formas de chaves. Os olhos deslizaram do molho para a mesa, em imbuia escura e aparentemente sólida. Viajaram até as paredes camufladas por um simples papel colorido lembrando flores impressionistas.

– Qual é sua resposta? –  indagou com aparente calma e disfarçada curiosidade.

– Preciso responder agora? – ela retornou com dissimulada ingenuidade.

– Sim, precisa. Dependo dela para decidir meu futuro.

– Se for positiva?

– Inicio os preparativos.

– Se for negativa?

– Sairei de sua vida.

– E um talvez?

– Certamente não se aplica à minha pergunta.

– Então, dois minutos mais. Por favor.

Num aparente gesto descuidado, ele bateu delicadamente com os dedos no molho de chaves e as deixou mais visíveis para ela. Sobressaíam as chaves novas, brilhantes, maiores. As pequenas e coloridas, montavam o cenário para as protagonistas. O tempo escorreu por entre os interstícios do chaveiro.

– E então?

– Bem, sabe… pensando bem… minha resposta é não.

– Tem certeza?

– Absoluta.

– Lamento. Muito.

Juntou o chaveiro, as chaves tilintaram em despedida, a escorrer lágrimas de metal. Sumiram no bolso e ele sumiu na esquina, apagando-se do cenário.

Ela continuou sentada à mesa, semblante decidido, olhos secos e fixos em uma das flores do papel de parede. Sem portas nem chaves. Apenas a luz filtrada pela janela aberta, que não precisa de chaves. Mas que não dispensa a luz e a lua.

Fora de ordem

Marta Morais da Costa

Foto por Pixabay em Pexels.com

Ô, Helena, tu vai ao mercado? Leva o Chico com tu que preciso resolver problema de boleto no banco.

E onde a gente se encontra depois, Cecília?

No ponto de ônibus, Helena. Calculo que em meia hora tô lá…

Tudo bem. Tchau então.

Helena pegou a mão de Chico e se foram porta adentro do mercado. Pão, cenoura, leite, arroz que estava em oferta, um pacotinho de farinha. Ah, e ovos! Tudo rapidinho pra poder cumprir o tempo aprazado. Chico quieto ao lado, ajudando a colocar no carrinho as comprinhas apressadas.

Mas quem resiste a uma prateleira de doces e chocolates? Helena se debruça sobre o balcão pra escolher as batatas. Chico, pacotinho de farinha na mão, aproveita para escapar para o corredor ao lado. Quer um pirulito vermelho como aquele que o Reca tinha na boca no recreio da escola. Sai de fininho, mexe e remexe e desalinha as mercadorias na prateleira. Nada do pirulito. Talvez no próximo corredor.

Sem Chico, em direção contrária, Helena aflita entrava em corredores cada vez menos próximos do desejo do menino: detergentes, compotas, álcool álcool álcool em formatos e cores diversas – do vinho ao caramelo, do verde ao incolor – e nada do Chico… Começou a temer.

O rapaz viu o menino, sozinho e atrapalhado, perguntou o nome, quem o havia trazido, onde estava a pessoa. Respostas confusas, a voz de criança usando uma língua parecida com o português. E o choro imediato a molhar os sons e expressar seu temor.

O mercado em polvorosa: a mulher procurando o menino, o menino procurando o pirulito, o rapaz procurando compreender, todos querendo reunir novamente a mulher e o menino. E todos a quererem trazer de volta a rotina de um mercado com pessoas que escolhem e compram e se vão.

Aos poucos uns falam com outros, de corredor a corredor o caso corre, as informações correm e corre o boato de que a criança tinha sido abandonada. Já se falava em polícia, boletim, aplicação das sanções de “abandono de incapaz”. Helena sem carrinho e sem compras andando em círculos pelos locais já devassados, gentes tomando a mão de qualquer criança que parecesse estar abandonada – e muitas crianças pareciam zumbis, mesmo com adultos por perto.

Não durou muito a procura: o suficiente para eletrizar o ambiente, parar as caixas registradoras, tirar do trabalho os repositores, provocar o engarrafamento de carrinhos e compras deixados ao léu, vozes altercando-se é esse o menino? essa a criança? e aquele ali? será que o menino não saiu e foi pra rua?

A palavra rua explodiu no ambiente: mães agarravam os filhos, prendiam nos braços, gritavam sua maternidade é meu! é meu! esse é meu! Vários clientes correram para fora do mercado, a vistoriar a rua que, por sorte, estava quase vazia e não tinha crianças à vista. Voltavam e em voz alta – até exagerada – tentavam acalmar quem estava nos corredores não saiu, não saiu, tem que estar aqui dentro! Clientes mais perspicazes juram que viram nuvens de alívio azuizinhas baixando sobre mercadorias secas e molhadas, pairando belas e leves sobre a panificadora e até o açougue.

Em cena cinematográfica, eis que Helena entra em um corredor, que ela jura ser o dos doces e chocolates, e o rapaz que trazia Chico pela mão jura que era o dos talcos e sabonetes, não importa, Helena vê Chico que vê Helena. Correm um para o outro, abraçam-se e os clientes, todos sorrindo mazzaropimente, aplaudiram a cena final daquele suspense capitalista.

Ah, Chico trazia na boca um pirulito vermelho…

Tudo bem, Helena? Comprou o que tu precisava? Chico se comportou? Os três reunidos no ponto de ônibus, sem atrasos de parte a parte.

Chico é um menino obediente, Cecília. Até me ajudou a colocar as coisas no carrinho. Deu tudo certo e Helena baixou os olhos. Vai que eles ainda guardassem restos de medo…

No estilo Marley e eu…

Marta Morais da Costa

Gostava de dirigir e de sair por aí sem saber aonde ir e sem ter hora de chegar. Logo que a profissão lhe permitiu, entrou em uma concessionária e comprou um carro zero. Comprometeu por quatro anos o orçamento reduzido, mas pôde exibir um semblante pacífico e de meio sorriso, típico das pessoas contentes consigo e com o que veem ao redor.

É verdade que, rodando pela cidade, viu muitas cenas tristes de gente morando em calçadas, de casebres com placa em neon, oferecendo serviços como conserto de sapatos, pintura, tarô e flores artificiais.

Viu também o empilhamento de pessoas e casas com vinte, trinta andares e um jardim frontal de 5mx10m com calçadas ocupando o triplo de espaço. Viu transeuntes apressados, carregados, solidários, gritantes, cabisbaixos, atônitos, suplicantes e, acima de tudo, aguerridos sobreviventes das batalhas urbanas.

Viu quadras em ruínas, parques coloridos, pontes de vários tamanhos, árvores e tocos, bosques e areais, dejetos e placas de projetos, flores nas janelas e muros pichados.

Ouviu palavrões, buzinas, ameaças, assaltos, pedidos de dinheiro e oferta de balas. Admirou os artistas de esquina, os motoristas cuidadosos e os prestadores de serviços públicos em ação. Não parou em acidentes, foi parada em proximidade de incêndios e em manifestações em prol de bandeiras variadas.

Nada diferente do que qualquer motorista vê, ouve, contempla e vive quando se aventura nas ruas de uma cidade.

Mas tinha uma identidade peculiar: a cada quatro anos, entrava em uma concessionária, deixava ali o automóvel em uso e saía com a nota fiscal de um novo carro. Zero, é lógico.

Não o fazia por exibicionismo, superstição ou pelo mau estado do velho companheiro. Apenas cumpria o conselho que havia recebido do pai: troque de carro a cada quatro anos – ou menos- já que você não entende e nem quer aprender sobre mecânica; carro novo costuma não dar problema durante esse período.

Pontualmente fez isso durante toda a vida. E a cada nova aquisição batizava a máquina com um nome-síntese do que considerava ser a identidade do veículo, muita além e mais significativa do que a placa obrigatória.

Passou pelo Grama, verde, baixinho, macio; pelo Estácio, que um dia transportou uma caixa de vinis de samba, que ganhou de uma prima que foi morar em Salvador; pela Madame de Sévigné, uma perua amarela, que lembrava as cores dos Correios; pela Madá, também conhecida por Madalena, com quem viveu de modo que “nem tão pouco se admite/que do nosso amor duvide”; o Sabiá, um potente fusca que cantava os pneus e os pinos que era uma beleza, tanto nos lás como nos cás; um corcel preto, Batman, que subia a serra em voos noturnos e amanhecia apaziguado na caverna do subsolo do prédio.  

Mas o maior conflito, a dúvida entre espada e caldeirinha, a escolha de Sofia está sendo neste momento. Cumprem-se quatro anos de vida amigável com uma onda civilizada, a Frozen, prateada e com termostato desregulado, que se mantém invariável na temperatura ártica de 16 graus. Mais-dia-menos-dia, entrará na concessionária para trocar, talvez, pela derradeira máquina de sua vida útil de motorista amadora.

Tem que ser um carro coroação, um ser significativo de uma trajetória de medos e surpresas, de paisagens e rostos, de multas e prestações, de desapego e dependência, de conversas a vidros fechados e brigas entre pedais. Não sabe como será essa máquina: dependerá do contato elétrico, faísca de descoberta: é esse! Tem cara de the end!

Venha na cor que vier, no tamanho que tiver, na potência pequena ou maiúscula do motor, bebendo álcool ou descarregando bateria, será seu amor derradeiro. O nome, este, já escolheu.

Consulta o saldo bancário, veste seu melhor traje “vou comprar um carro zero”, entra na Frozen e se dirige à concessionária.

Vai se encontrar, certamente, pela vez primeira com o Adieu, mes enfants!

Foto por Caio em Pexels.com

Translação

Foto por Cole Keister em Pexels.com

Era o que se costuma dizer uma mulher simples. Não porque fosse desvestida de qualquer complexidade. Não porque fosse desprovida de herança e pecúlio. Não porque se vestisse ou comportasse com alguém que desconhece moda ou etiqueta social.

Ela era simples porque via o mundo e as pessoas de forma binária e de acordo com padrões tradicionais. Eram indivíduos do Bem ou do Mal, ateus ou religiosos, com família ou desajustados, criminosos de má catadura ou angélicos cidadãos confiáveis.

Era uma mulher simples.

 Não tomava partido em nenhuma disputa vá lá saber a história de vida do sujeito, eu também no lugar dela faria isso, não podemos julgar pois todos erram. Do perdão à omissão o caminho é curto.

Recusava-se a falar de política, sexo ou arte. Preferia conduzir a conversa para a criação dos filhos eu sempre ensinei os meus a respeitar os outros, em minha casa pornografia nunca entrou, fumar? nunca! beber? jamais! Os filhos perfeitos casaram-se com mulheres perfeitas, tiveram filhos perfeitos e um casamento durável.

Gostava mesmo era de conversar sobre culinária e trabalhos manuais. Ah, se gostava. Receitas sempre na ponta da língua e no núcleo da memória. Crochê, bordado, costura, papier maché, macramê, ikebana, nada representava dificuldade: uma vez que aprendi, jamais esqueço, só aperfeiçoo.

Não dirigia automóvel Deus me livre, tenho medo!, somente lia horóscopo, acreditava em OVNIs, desconfiava de artistas sempre estão mudando de sexo e de parceiros, benza Deus, que gente mais volúvel! O adjetivo não era bem esse: foi substituído porque este é um texto com finalidades morais…

 Participava de grupos de voluntárias para atender pessoas, animais, ajudar em catástrofes e visitar asilos e hospitais. Até fazia doações para instituições de caridade, próximas e longínquas. Era uma pessoa com qualidades humanísticas. E era uma mulher simples.

 Até seu aniversário de 60 anos. Bolo com velas, visitas de parentes e amigos, telefonemas, mensagens de whatsapp, facebook lotado de parabéns, abraços, corações e aplausos.

O marido a saudou de manhã com café na cama. Almoçaram em restaurante caro nossa, tudo isso? Até deram uma volta de carro por alguns bairros próximos e ela se assombrou com as mudanças. A noite, foram ao cinema do bairro ver aquela comédia familiar em que tudo dá certo no final. Um dia primoroso.

Na manhã seguinte, foi despertada pela voz de uma alma nada generosa a reprovar fatos e condutas de sua vida. Uma alma que deve ter fugido do purgatório e que a espicaçou com perguntas de difícil resposta por que você sempre toma partido de seu chefe? de seu marido? de seus filhos? Mesmo contra aquilo que você pensa? E foi o dia inteiro…cadê a viagem que você queria fazer? a comida que gostaria de comer de verdade? a roupa da moda que gostaria de vestir? o batom? o esmalte nas unhas? a vontade de ficar sem fazer nada? o curso de dança? e de inglês? a visita a Portugal? o banho de lama? rir com os amigos noite adentro?

O marido notou o olhar interrogador, as ausências, o trabalho não feito, as mãos sob o regaço, a postura fora de prumo. Está tudo bem? Está tudo bem? ei, mulher! Ensimesmada e muda, sentada e abstraída, imóvel e surda.

À noite, sem dormir, resolveu escrever a lista do que não fez em décadas. Assustou-se.

No dia seguinte, fez a lista do que queria fazer com o restante de sua vida. Assustou-se.

No dia seguinte do dia seguinte, assumiu a nova idade, outro olhar sobre a realidade e pôs-se a dizer não e pôs-se a fazer o sim.

Descobriu-se complexa.

 

 

Marta Morais da Costa

Canto contínuo

Marta Morais da Costa

Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha

(Caetano Veloso)

Nos guardados da memória, as canções da adolescência ocupavam muitas gavetas.

Sons e letras, nomes e fatos formavam um capital inesgotável. A sem-censura adolescente nada sabia de timbre ou qualidade de voz. Soprano ou barítono eram apenas estrangeirismos e esquisitices de quem pavoneava conhecimentos musicais.

Gostava mesmo era do rádio ligado o dia inteiro, fazendo companhia. Em volume alto nos programas de calouros e muito íntimo, quase sussurrante, nas radionovelas. Alguém a lhe contar em segredo histórias de amor e ambição, que criavam a vilania. A posse como jogo já se chamuscando de infernos antecipados.

Mas era a música a paixão mais verdadeira. Cantava interiormente ao saudar o dia, a cozer as refeições, ao chuveiro. Dançavam os sons em bailes silenciosos.

Assim, dia a dia, formavam-se alianças sonoras e letras em conúbio nos cartórios da memória.

Ela chorava amores incompreendidos sem compreender o que era amar um homem. Somente sabia de sua indesejada solidão. Pai e mãe há muito morando no cemitério nos limites da cidade. Parentes nenhuns: se os tinha, eram desconhecidos, ausentes. O trabalho nômade de casa em casa não criava liames nem companhia.

Mas topou na esquina, em um domingo, com a realidade da fantasia. era músico, violonista, cantor nos bares da vida. O amor foi chama devoradora em um inferno de ciúmes.

Ele cantou, ela mergulhou nos sons e os dois se fizeram uma canção nova.

Juntos fizeram serenatas e duetos, desafinaram e concertaram. Árias em atrito, fados em lamúrias, modinhas em consonância, sambas em epifania. Mas chegou o desacordo do rock, chegaram as queixas do soul, as controvérsias do pop.

Hoje, cada um em seu ritmo díspar, segue a vida cantando em palcos incompatíveis.

O músico se foi, mas a música permanece.

Agora, na casa durante o dia acalantos ressoam, secundados por vozes infantis. O pão é pouco e vem acompanhado de choros de fome e do planger de cordas. Choros que ela compreende, harmoniza e acarinha.

Filhos da música e da euforia vêm partilhar as gavetas da memória: a cada um o seu ritmo, a cada um o seu canto, a cada um o sol e o escuro. E ela canta.

Uma casa à sombra

Foto por Engin Akyurt em Pexels.com

Juro que só passei aqui para ver o estado de nossa casa. Há tanto tempo que a gente deixou de morar nela, não é? O jardim está meio abandonado. Lembra o cuidado que tínhamos em aparar a grama, limpar as ervas indesejadas, plantar e replantas as flores?

Não esqueço os momentos em que, juntos, cuidávamos de tudo, horas a fio, conversando, fazendo planos, adubando, comentando o cenário político, podando, repassando a programação do dia seguinte. O trabalho rendia e sentíamos a cooperação tomar forma.

A casa branca de janelas azuis era acolhedora e alegre. Não descuidávamos dos detalhes: a pintura, os consertos, as portas abertas e, lá dentro, o perfume da limpeza e a claridade do acolhimento.

O quintal era nosso lugar de criação. A horta, o viveiro de plantas, as frutas pendentes, as flores anunciadoras da produção que se gestava. A sombra, o silêncio, a cômoda espreguiçadeira ao lado da rede colorida. O ruído das folhas no chão, a umidade do solo e a vida verde pacífica.

Quando foi que perdemos tudo isso? Foi naquele Natal frustrado? No Dia dos Namorados em que o amor bateu cabeça no umbral da porta e desfaleceu? No dia de minha demissão em que palavras acres e duras tentaram compensar a frustração? No final de semana de ciúme violento em que minha mão encontrou sua pele com a força da vingança? Nas manhãs de noites sem amor nem carinhos? No silêncio de bocas fechadas à força pelo sentimento de aridez e solidão? Na indiferença cotidiana que aos poucos ocupou os minutos sem fim?

Perdemos, deixamos sumir, indiferentes vimos transformarem-se o afeto e a cumplicidade. Em seu lugar, a fria indiferença, palavras geladas em coração ainda quente. Sem tentações, sem frestas, sem fugas: só o progressivo abandono do que parecia ser a inamovível felicidade a dois.

De repente, a troca ácida de frases e de mágoas adormecidas. Fomos vítimas e algozes de nossa própria incúria e soberba. Nada ficou sólido o suficiente para contornos ou retornos. Seguimos em frente (em frente?) separados, isolados e desolados.

Do outro lado da rua, olho o jardim em desmazelo. Olho em mim em desalento. Olho o passado em imagem desmaiada. A casa reluz em branco e azul, portas fechadas, janelas abertas de onde jorram cascatas de trágico Chopin.

A música ambienta a certeza de que o quintal, inacessível aos olhos, resiste em alguns pontos de sombra e verde (resistente à total destruição). O aroma doce das frutas parece permanecer. Talvez seja o desejo de que nem tudo seja desaparecimento.

No canto mais à sombra no jardim, me parece distinguir teu vulto esbelto, as mãos camponesas e carinhosas, o riso fácil, o olhar afetuoso. Em vão.

Continuo o caminho. Sei agora que não retornarei a ver a casa. Seu coração deixou de bater neste exato momento. Ela permanece branca e azul, como um cadáver.

Agora a solidão engolfa a a tarde.