A porta de saída. A chave. O portão em seu chorar habitual. A rua deserta. A chuva faiscante nas folhas e no asfalto.
Passos seguros. A bolsa colada ao corpo. O guarda-chuva criando um halo de proteção. Braços banhados no gotejar das varetas. Sobe a umidade pelas solas dos sapatos. Apressa-se. Até a marquise próxima. Mais alguns metros. Equilibra desajeitadamente o guarda-chuva, a bolsa e o celular. Pede um táxi.
Tem duas horas que sua vida desabou.
A espera vã por um telefonema. Estou chegando. Abra a garagem para mim. O toque no botão, a porta abrindo, o carro entrando. Depois era correr para os braços, as palavras, o beijo de chegada. Só então a vida retornava. Sem trabalhar, o dia era longo. A distância era sofrida em fogo de saudade. Ele no escritório. Ela embrulhada em lençóis, sem vontade, sem ação.
Currículos distribuídos. Telefonemas em vão. Mensagens negativas. Nada, ninguém, nenhum. A fila do desemprego. A angústia da inação. A lembrança do trabalho. A constância do dinheiro pingando na conta. A segurança do emprego. As amizades, as conversas, o sentir-se útil. Mesmo que utilizada.
O caos repentino, as perdas, a demissão. Na cambalhota da história, a rua, o porta afora, os dias iguais e vazios. A inatividade a levar de roldão o entusiasmo, o riso, a disciplina, os objetivos. Aos poucos, o desapego, o desleixo e a indiferença.
O marido dobrando os dias. O marido dividindo o salário. O marido desapegando-se dela.
Mais dias e mais dias: a vida perdeu seu curso, o amor perdeu a força, a união gastou seus elos. A mesmice envolveu o tempo em mortalhas. Eram duas solidões a ocupar a mesma cama, os mesmos móveis e o espaço sufocante de uma casa sem ar.
Não tardaram as palavras viperinas, as janelas fechadas, os olhares desconfiados de vizinhos.
E a casa cercada de muros, a morte grassando no bairro, a tevê em enchentes de más notícias. A vida sem sol, sem saúde, sem saída.
Até aquela noite. Palavras duras, com sabor de sangue. A verdade do amor em agonia e a impossibilidade do afeto. Em volta, ruínas do que foram um dia luas de carinhos e clarões de felicidade.
O táxi estaciona a seu lado. Entra e pede rodoviária, por favor. Também a cidade está perdida. Banco de trás, silêncio, quase escuridão. A lágrima não tem sal. Talvez apenas a chuva que a submerge no desastre de um tempo sem futuro. Talvez.
Antigamente no Paraíso, os animais andavam, caçavam, comiam e adormeciam. Eles abriam a boca, mas nada se ouvia. Eram todos mudos. Embora o Paraíso estivesse povoado por seres vivos, mas não se ouvia nenhuma voz.
O silêncio habitava o Paraíso.
Um dia, um beija-flor enamorado tentava mostrar seu amor – batia as asas, girava seu corpo, dançava, fazia caretas e trazia um buquê de insetos para oferecer à sua bem-amada.
Na angústia de expressar seu amor, ele perdeu a respiração, engasgou-se e começou a tossir. Entre os ataques de tosse, ele percebe um som estranho que sai de sua garganta e descobre que o ar produziu um barulho agradável.
Então ele tenta diferentes movimentos de bico e outros ritmos feitos pelos golpes de ar. Pouco a pouco nasce um canto em sua garganta, que corta o ar e acaba com o silêncio.
Os outros animais ficam espantados. O que era aquilo?, se perguntam, entre assustados e curiosos. Então, eles também principiam a fazer barulhos com a garganta. Surgem urros, guinchos, zurros, relinchos, latidos, bramidos e cacarejos. Mas somente os animais enamorados conseguiam produzir sons sedutores e agradáveis.
O Paraíso ficou, assim, cheio de música e conversas.
Mas o amor também faz suas guerras. E rapidamente gritos, rugires e sons agressivos vêm criar a assonância de uma música de guerra. A mesma voz que fala de amor, fala de sua morte. E até mesmo expressa ódio.
É por causa dessas contradições que os sons do amor se escondem e não se mostram senão em momentos especiais. Muito raramente.
Esta é uma história que se conta para explicar a origem da voz dos animais.
Além do mais, é por isso que o amor e o Paraíso, ele também, contêm espaços de Inferno.
Se pudesse, passaria o dia todo sorrindo. Não porque fosse uma otimista, mas porque seus dentes eram perfeitos, brancos como a neve ao cair. Os músculos faciais, ao se retesarem para formatar aquela expressão de completo acordo com a vida, faziam sobressair as maçãs do rosto, em puro veludo rosa. A pele esbanjava brilhos e os olhos executavam uma ciranda caprichosa e franca. A cabeça parecia ganhar altura e o corpo repousava em uma postura ao mesmo tempo sem tensões, mas atenta, como que à espera do correspondente sorriso alheio, receptivo, admirador, concordante.
Sorrir era sua arma de conquista, sua alma exibicionista. Era um cartão de visita e a mensagem de ocupação do espaço-tempo do contato, da conversa, do centro da roda.
Sorria segura, ocultando atrás das retinas um cérebro de observadora, de cientista, de dissecadora de cobaias. Armadilhava o sorriso e capturava detalhes e reações que, de imediato, selecionava e arquivava na memória. A surpresa de quem a considerava apenas mais um exemplar de fêmea. A admiração de quem inscrevia em sua pessoa o sinete de mulher perfeita. A explosão emocional em quem o rosto em movimento elevava o enlevo ao grau mais absoluto de amor à primeira vista – melhor, ao primeiro sorriso. A contida inveja de possíveis rivais estraçalhadas entre o reconhecimento da força de sua presença contente e a autopiedade pela revelação dos próprios defeitos. Mais que todos, sobressaía o olhar hipnotizado do esteta no momento em que descobria a sua frente uma Vênus renascida ou Galatéia retirada da pedra informe.
Sorria e amealhava reações. Sorria e alimentava-se com a adjetivação superlativa que coalhava o chão imaginário em seu redor. Sorria e vampirizava a existência alheia, sobrevivente.
Veio o tempo em que o sorriso fixou-se. Não aceitava que ele desaparecesse do espelho em que, estática, se contemplava. Recusava posar para fotos em que só ou acompanhada não pudesse irradiar o sorriso complacente com a posteridade. Sentava-se à mesa, desdenhando ações mortais de comer e beber: passava as refeições entre líquidos sorvidos entre lábios distendidos e garfadas-relâmpago a justificar um mastigar risonho. Adormecia somente após certificar-se que o rosto ainda encenava a alegria de permanecer sorridente na cabeça pousada sobre o travesseiro.
Para todos, era a Miss Simpatia perfeita nos primeiros encontros. Aos poucos a fixidez inalterada do sorriso emitia sinais de complacente e pegajosa aceitação de tudo. Em pouco tempo, o sorriso assemelhava-se a uma máscara a desdenhar da realidade e a qualificação de indiferença e desprezo pela dor alheia colava-se ao ricto facial. Ela envelhecia em uma ilha de solitude.
O sorriso que atraía era o mesmo que afastava. Seu senso de observação passou a exigir mais aproximação, mais empatia. Passou a exercitar os músculos para compor expressões de afeto, de compreensão, de consideração para as histórias de outros. O sorriso, antes fixo, começou a apresentar fissuras e desalinhos. Na desarmonia do rosto não mais imperava a atração. Abria-se o confronto com a repulsa.
Sorria automaticamente para os pedidos de ajuda, para as queixas de amor, para as notícias de luto, para as urgências da fome, para as descrenças e desesperanças. Quem se aproximava dela era recebido pela mecânica irrefreável de um sorriso petrificado. Por dentro, ela se contorcia em impossíveis mudanças da face: queria gritar sua compaixão, despejar suas lágrimas, estender-se em ouvidos solidários.
Em vão. A solidão alargou-se em profundo isolamento.
Estacionou o Ka na garagem do prédio. Do porta-malas retirou três sacolas plásticas. Ajeitou a máscara e com cuidado pressionou o botão de chamada do elevador. Imediatamente deu um banho de álcool em gel nas mãos. Dentro do elevador, mais um banho. Abriu a porta do apartamento, deixou os sapatos na entrada ao lado das sacolas. Correu lavar as mãos com sabão, ainda de máscara. Preparou uma solução higienizadora, armou-se de bacia, panos e vaporizadores e voltou à entrada da casa. Banho cuidadoso em pacotes e sacolas e mãos. Também os sapatos.
Só então retirou a máscara, acondicionou-a em um saco plástico e levou à lixeira, do lado de fora da porta de serviço.
Cumprido o ritual, abriu a janela e respirou pausadamente para recobrar a segurança e a tranquilidade. Nove meses haviam se passado. Quatro apavoradas saídas ao longo desse tempo todo. Uma consulta médica, uma bateria de exames de laboratório, uma extração dentária e um passeio em automóvel fechado para relaxar de violenta crise de ansiedade que lhe custou uma insônia de quatro noites.
E agora a quinta saída: uma visita dispendiosa à farmácia. Ela foi precedida de dias de preparação da lista de remédios e chás e unguentos. Havia adotado um procedimento de registro de sintomas quase diário, intitulado: A botica da pandemia. Para isso, observava-se detidamente ao longo do dia e anotava tudo o que sua saúde apontasse como anômalo. Eram diferentes tipos de queixumes. Anotado o acontecimento, buscava lembrar pessoas que pudessem, à distância, sugerir ou indicar medicamentos e recursos para melhorar as dores e incômodos.
Quando amanhecia com dor de cabeça no lado direito, tia Constância era uma boa fonte de soluções: compressas de chá de melissa com folhas de louro. Se a dor era do lado esquerdo, melhor consultar primo Luís e lá vinha a receitinha: chá reforçado de alecrim, gotas de cachaça da boa e um comprimido de AAS. Na falta deste, um suco reforçado de couve com limão.
Para os dias em que a dor era muscular, a consulta invariavelmente era com prima Dorinha. Escalda pés com gotas de vinagre de maçã e uma boa fricção de abacate, devidamente embebido e maturado por 40 dias em álcool 45º. E mais um repouso de 15 minutos de manhã e à tarde, depois de comer uma maçã fuji. Talvez uma pomada de castanha da Índia também possa ajudar. Mas a maçã tem efeito mais imediato. E é uma delícia! Dorinha é uma mulher prática.
Para o estômago virado do avesso uma tisana de camomila, melissa e ruibarbo. Na falta deste, umas gotinhas de extrato de calêndula: era tiro-e-queda segundo vó Leonor. Caso a melhora não fosse imediata, ela recomendava uma taça de vinho do porto, aquecido e temperado com canela.
Se o intestino estava condenado à prisão perpétua, aí o tratamento era mais rigoroso. Dieta imediata: água e mais água durante um dia inteiro, exclusivamente. No segundo dia, caldo de legumes frescos exclusivamente. No terceiro, dieta pastosa de batata doce, mandioquinha e aipim amarelo. Se o a entrega do supermercado chegasse a tempo e com os ingredientes certos… Na falta de aipim amarelo, um bom suco de laranja, medicava a irmã, sofredora contumaz da falta de liberdade do criminoso intestino.
A insônia é combatida com relaxamento, insistia prima Celeste. Algumas posições de ioga (pegue lá no Google, tem um monte, dizia). Um copo de leite com chocolate belga atende seu desejo libidinoso gastronômico e aquieta sua angústia com a balança. Afinal, remédios sempre têm efeitos colaterais, o peso é um deles. Dormir emagrece; daí o corpo se equilibra… Com essa filosofia médica, Celeste é a prima que mais recebe pedidos de ajuda na família.
A medição em casa deu aumento da taxa de glicose? Não se apoquente, aconselhava tio Dudu, compreensivo. Elimine frutas e carboidratos. Alface e verduras em geral, em especial as verde- escuras. Com três dias dessa dieta, você perderá peso, ganhará uma pele mais ecológica, e, batata, o índice de glicose despencará! Depois, estará liberada: até maionese e leite condensado são recomendados!
A pandemia trouxe o estresse mental e a falta de atividade física jogou seu condicionamento no lixo? Ou você sai do conforto e faz exercícios em casa, com vassoura, um tapetinho, uma corda de varal e recipientes com água pra servir de pesos, ou vai pro sofá assistir jogos de futebol pelo mundo, concursos hípicos e hóquei no gelo. Neste segundo caso, programe uma visita ao geriatra logo, logo. Seco e direto, o primo Benjamim sugeriu.
Para o estresse mental, leia livros de autoajuda, sucinta recomendou prima Dita.
A piora geral levou nossa heroína à quinta saída: a consulta ao clínico geral, a visita à farmácia e às sacolas plásticas, mais recheadas do que as de supermercado.
Agora estava preparada para mais nove meses: que venham os sintomas!
Recomendação do narrador: as receitas aqui divulgadas são de responsabilidade dos familiares consultados. Eu apenas servi como escriba.
Antenor está empregado numa fábrica de móveis. Seu trabalho consiste em cortar e lixar a madeira para a fabricação de móveis. Telefona para casa no meio do expediente. Lúcia está na cozinha, preparando o almoço dos filhos. Ao ouvir o telefone, assusta-se. Confere as horas e pergunta-se quem poderia ser. A voz de Antenor a deixa mais assustada ainda. Ele diz que não está se sentindo bem e que vai ao médico.
De imediato, histórias de acidentes, infartos, derrames enchem a cabeça da mulher. Pede a ele que telefone avisando o que o médico vai dizer e que venha para casa o mais cedo possível, para deitar, descansar e recuperar-se. Ele concorda e desliga o telefone.
Lúcia volta à cozinha. Agora os preparativos ficam mais difíceis. Nem enxerga bem as recomendações das embalagens,. Troca as louças de lugar, sem saber bem o que quer fazer com elas. Desliga o rádio: as palavras do religioso, a falar de pecados e de Jesus agora não fazem muito sentido. Sente falta do sal para temperar o alimento. Mas havia esquecido de anotar na lista de compras do supermercado. Nervosa, toma o telefone para falar com a vizinha: quem sabe consegue um pouco de sal. Mas não lembra o número. E as crianças devem chegar logo da escola… Um cheiro desagradável chega a suas narinas. As batatas! Agora, precisa inventar outro prato. Quem sabe não vai lembrar alguma receita rápida? Na rua, o frear do ônibus anuncia a chegada dos filhos.
Valdelúcia entra em casa disposta a ir imediatamente ao quarto, largar sobre a cama os materiais do cursinho e telefonar para o namorado, desmarcando o encontro da tarde. A prova do ENEM no final de semana está lhe tirando o sono, a fome e o amor. Precisa garantir boa nota para tentar o vestibular da universidade pública. Seu pai não pode arcar com mensalidades de uma particular. Anda assustada com a redação: soube de alguns exemplos ridículos que o professor ironicamente comentou em sala. Não quer dar vexame. Na cama, continuam espalhados os livros que havia consultado de manhã bem cedo, antes de sair. Separa os que trouxera da biblioteca, põe sobre a mesa de estudos os CDs de música emprestados pela amiga, e voa para o telefone no corredor perto da porta da rua.
Lucas dá um beijo distraído na mãe, larga os livros no meio da sala, deita-se no sofá e liga o televisor. Seu desenho animado preferido já vai pelo meio. Em nada diminui, no entanto, o interesse e curiosidade do menino. Entre um efeito especial e a sonoplastia adequada aos socos e explosões que pipocam na tela, tira o material da mochila e de barriga para baixo, a maior parte do tempo com os olhos no televisor, lança olhadelas nas páginas escritas e reproduz nos exercícios o que a professora havia explicado durante a aula. Sua pressa em terminar os exercícios se justifica: mal engolido o almoço que se anuncia pelo cheiro apetitoso que vem da cozinha, sairá a brincar com Felipe, da casa ao lado. Bola e videogame encherão a tarde e o tempo vai escoar rapidamente. Lúcia, da porta da cozinha, olha o menino, orgulhosa pela dedicação que o filho dá aos estudos: nem almoçou ainda e já está mergulhado nos livros! Este menino vai ser médico, no mínimo!
O almoço está na metade quando Antenor chega. Traz o semblante abatido. Queixa-se de fortes dores de cabeça. O médico não descobriu a causa, mas lhe receitou vários remédios, de nome difícil, mas que, segundo o doutor, o deixariam curado. Bem que tentou guardar as palavras do médico explicando o modo como tomar os remédios. Era uma conversa de colheres e horários. Pelo menos, o médico havia escrito tudo. Poderia ler quando precisasse, pensou Enquanto se prepara para almoçar, pega a receita. A letra é um garrancho só. Vai ter que telefonar ou passar novamente no consultório para ouvir as explicações. Não é só isso que o incomoda: pensa no dia de trabalho perdido. Havia sido tão difícil conseguir aquele emprego! Não poderia perdê-lo agora! Trabalha muito e espera uma promoção para breve. Até está buscando aprender um pouco mais. Valdelúcia o ajuda e lhe traz algumas informações, tiradas da biblioteca e de uma tal interné. A dor de cabeça aumenta. Deita-se, fecha os olhos e fica a ouvir os barulhos da casa, em plena tarde.
Enquanto Antenor tenta acalmar a dor e a angústia, Lúcia liga o rádio para ouvir o programa de fofocas sobre artistas de televisão; Valdelúcia estuda no quarto, muda com lentidão as páginas da apostila por causa da dificuldade em compreender as idéias das frases; Lucas joga futebol alegremente e de vez em quando atravessa o gramado da praça em busca da bola, muito próximo da placa em letras vermelhas e exuberantes: NÃO PISE NA GRAMA.
Na lida diária dessa família, futuro é apenas mais uma palavra abstrata. Talvez vazia.
Quando você me pediu para escrever um pequeno texto sobre minha profissão para ser publicado no Dia do Professor, pensei em fazê-lo à moda dos discursos políticos e oficiais, com frases de incentivo, adjetivos elogiosos, substantivos idealizados e muitos verbos de afeto. Algo parecido com: “Ser professor é padecer no Paraíso. A educação é o esteio moral de um país. Ser educador é missão que enobrece e constrói o cidadão do futuro. Não há nação desenvolvida sem educação de qualidade. O professor educador é o agente de mudanças e alicerce de um país melhor.”
Já lemos e ouvimos essas palavras em diversos lugares, situações, textos e momentos. Concorda?
No entanto, se compararmos essas frases com a realidade e a história da educação no Brasil, podemos verificar o quanto são dizeres contraditórios e enganosos. Por vezes, embora expressem verdades parciais, nunca se realizam, não passam de palavras vazias, esbarram na cruel e desprezível e mesquinha recompensa do cotidiano escolar e social.
Deixo que essas frases retóricas continuem soando em forma de discurso repetido e repetindo-se como música de fundo, para que lhe conte um pouco de minha biografia como educadora. Creio que, desse modo, você poderá avaliar melhor o que representa a data de 15 de outubro para mim.
Sou de família humilde e estudei sempre em escolas públicas. Para meus familiares, ser professor era profissão altamente considerada, pois lidava com um conhecimento que havia sido, com dificuldades, acumulado por gerações. Representava uma pessoa destaque na comunidade porque era alguém capaz de dominar esse saber.
Na escola pública, no entanto, ser professor era, acima de tudo, um emprego estável. Alguns de meus professores cumpriam à risca esse mandamento. Davam suas aulas com quem carimba papéis ou atende formalmente o público. Alguns deles chegavam a usar a estabilidade como respaldo para arbitrariedades. No entanto, entre dezenas de professores, alguns poucos deixavam emprego e segurança em segundo plano para se aventurar nos mares do conhecimento – para cuja viagem nos convidavam – e no universo da afetividade. Educavam para o presente, indagando o imprevisível futuro.
Foram eles os responsáveis mais diretos por minha decisão pela carreira do magistério. Foram, e continuam sendo, exemplos de vida profissional que persigo.
Da universidade saí munida de receitas e esperanças e iniciei minha atuação docente. Minha biografia até aquele momento, um plácido conto de Natal, ganhou os contornos de tragédia do cotidiano. As receitas só funcionaram enquanto a esperança resistiu.
(Ao fundo, continua a música das frases de efeito, não?)
O salário não resistia ao mês. Vendi na escola o que produziam minhas mãos nas madrugadas e finais de semana: blocos de papel decorados, almofadas de crochê, toalhas pintadas, sachês, artigos de Natal, sabonetes e velas. Mascateando, pude ter uma modesta cerimônia de casamento, comprar o enxoval dos filhos, pagar o aluguel de uma casa melhor. Livros? Ganhei de presente, comprei em sebo, recebi de editoras. Não abandonei o sonho de ser uma boa professora para não me tornar uma carimbadora de papéis.
Enfrentei o descaso de colegas (alguns até com maior experiência na carreira!) com o trabalho sério em sala de aula, ouvindo perguntas assim: “Por que se dedicar tanto se não vai ganhar mais com isso?” Resisti ao desânimo, às dúvidas, às dificuldades. Com realismo, tentei alcançar a estatura de meus bons professores. Vi crescer a indisciplina e a violência entre alunos e na comunidade. Experimentei a humilhação infligida a mim e a meus colegas por pais e alunos. Revoltei-me (e assim continuo) com o discurso oco e eleitoreiro sobre a “nobre missão do professor”.
“É nobre, mas não é missão. É profissão!”, dizia e digo convictamente.
Sinto-me por vezes uma espécie desatualizada de Dom Quixote lutando para vencer moinhos de ignorância e desprezo.
Hoje, vendo cosméticos, e não deixei de ler e estudar nas poucas horas vagas. Tento convencer alguns alunos ,mais porosos a meu exemplo e às minhas palavras, da importância do conhecimento para uma visão crítica da realidade. Sofro ao ver meu trabalho e boas intenções desprezados por alunos sem disciplina, nem respeito.
As imagens de meus bons professores às vezes sorriem para mim, numa espécie de conversa interior, numa espécie de farol a guiar-me nesta viagem cheia de percalços.
Os olhos de alguns poucos alunos abrem-se e brilham quando aprendem algo novo. Poucos e raros pais me confessaram que seus filhos mudaram, para melhor, demonstrando confiança na educação.
Se eu desistiria de ser professora? Pensei sobre isso várias vezes ao longo dos anos. Mas sempre que as dificuldades pesavam mais na balança, os pequenos resultados positivos, aqueles olhos brilhando, aquele sorriso de compreensão me estimulavam a continuar. Por eles continuei.
Por essas razões, o Dia do Professor para mim não tem sabor de festa. Tem marca de resistência. Agora sei: continuo porque resisto.
Para as crianças, depois de seu dia oficial de consumo.
Marta Morais da Costa
Luísa tossia muito na segunda-feira: estava com uma gripe poderosa, devastadora, contagiosa. Vítor caiu de cama, com gripe, na quinta. Luísa era sua colega de classe.
Artur estava com rubéola na aula de natação. Vítor caiu de cama, com rubéola. Artur e Vítor nadavam na mesma piscina.
Aurélio faltou à aula. Causa? Virose. Três dias depois Vítor não pôde ir ao aniversário de Letícia, Causa? Virose. Vítor e Aurélio são irmãos.
A insolação de Sérgio e a diarreia de Camila contaminaram Vítor: sol e intestino o deixaram de cama. Sérgio, Camila e Vítor curtiam férias juntos e misturados.
Vítor era um solidário. Nem a solidão dos dias chuvosos era penosa. Sabia que, cada um em sua casa, olhavam para as mesmas águas. Havia aprendido o significado de conviver.
Noite tranquila de sono, para ele, é de quatro horas. Em outras, o rolar na cama tem oito horas de insônia. Você precisa dormir, descansar, o médico recomenda, a revista de saúde confirma, a mãe adverte. Quem diz quê? Deitar a cabeça no travesseiro é incendiar o cérebro de medos, dúvidas e lembranças angustiantes. Dorme, infeliz! As pálpebras pesam, o corpo dói. É estresse, o amigo define e recomenda: beba mais água, não tome café, faça apenas um lanche à noite, frutas, nada de biscoitos ultraprocessados. Tentativas não faltam, a fome aperta lá pelas duas da madrugada. Jura que não vai assaltar a geladeira, vira pro lado, os olhos estalados, a cabeça dói. Mas não levanta.
Aquele compromisso das oito da manhã agita o sono que se afasta para Marte. Odeia Morfeu principalmente o com braços: quem inventou a expressão foi alguém que dormia doze horas ininterruptas. Nem Morfeu lhe faz carinho, abraça, sussurra palavras doces, convida para a cama, embala seus sonhos. A cabeça em curto-circuito, os olhos doem: vai chegar um lixo no escritório, já está se vendo, olheiras, mau hálito, cabelo que nem gel consegue domar, pernas pesando arrobas. E o mau humor? Daqueles de morder, ranger dentes, unhar borracha e trocar as letras do teclado. Tomara que o chefe tenha outro compromisso e adie a tal reunião.
Abre o computador, a internet deu pau novamente. Toca chamar o Ângelo da TI pra dar uma olhada na máquina. Pega o telefone e descobre que a telefonista da recepção não veio nesta manhã: o filho está com infecção na garganta. Qual é mesmo o ramal do Ângelo? Cara, tu pode vir aqui no almoxarifado ver o que aconteceu com minha internet? Tá descendo? Te espero, vem logo. Onde coloquei a planilha do Excel pra reunião de hoje? Em que pasta? Não consigo me organizar com este peso na cabeça: parece ressaca. Será que o chefe vai pensar que andei tendo uma noitada daquelas? Só me falta uma advertência na ficha. Logo agora que arrumei este emprego, depois de dois anos de bicos e falta de grana! Ah, Ângelo, vê se dá um jeito nesta internet, preciso buscar umas informações na rede. Acho que uma máquina nova iria bem, Alfredo. Esta aqui já foi bem usada e tá precisando memória, fazer umas atualizações, substituir a placa-mãe e uma pá de acessórios. Melhor pedir uma nova. Ângelo, tá louco? Mal entrei na empresa e vou pedir uma nova? O que o chefe vai pensar de mim? Posso fazer isso não. Não esquente, Alfredo, eu falo com o Artur: ele vai entender o problema, deixa comigo.
O telefone toca. É a secretária do Dr. Artur avisando que a reunião foi adiada para a tarde. De repente lembrei a pasta: a do Arquivos Provisórios. Ufa! Como é, Ângelo, vai dar para usar a internet hoje? Espera um pouco, acho que sim, vou tentar este atalho…
A cabeça começa a clarear, o resto do corpo pesado, um fio de pensamento se forma. Nada a ver com trabalho. O sol é de praia, o barulho é de onda quebrando, o corpo curvilíneo ao lado é de Adriana, o cheiro é de bloqueador solar, a toalha suja de areia. Tem um mês atrás, no feriadão, a gente numa boa, cerveja e moleza. Tá pronto, Alfredo. Vai dar pra usar a conexão, mas o computador logo vai falhar. Use enquanto der. Vou ver se arrumo outro para você. Legal, Ângelo. Tu é um bom amigo.
Da janela aberta entra a luz do sol e do barulho da rua vem o dia que começa na cidade. Corpo cansado, olhos fechando, a cabeça a voar por lembranças associadas: vontade de casar, vontade de mudar de cidade, vontade de sair da casa dos pais. Nem adianta ter vontade: adiantaria se tivesse a grana para tudo isso. Preciso recuperar a planilha, vai que o chefe me chama. Os dedos não obedecem ao comando. As letras dançam, difícil segurá-las em um espaço flutuante. Calma, vai com calma, Alfredo. Respira, toma uma água. Melhor se fosse café. Boa ideia! Vai até a máquina de café na sala, tira um expresso, corto, denso. Agora vai acordar.
Volta à sua mesa, retoma a procura. Digita, erra, digita, acerta. Erra de novo. A planilha não está nos “Arquivos provisórios”. A cabeça volta a doer. Pesquisa, vai de pasta em pasta. Nada. Saídas, Entradas, Correspondências, Atas, Reuniões, Código de Conduta da Empresa, Editais. Nada. Última pasta. Diversos. Lá está a planilha! Salvo! Vou copiar e salvar em várias pastas, por enquanto. Os dedos tropeçam, os comandos se confundem, a planilha some. Ângelo! Ângelo! Por favor, venha rápido aqui, preciso recuperar a planilha! Maldita insônia! Se eu perder este documento… A cabeça pesa. O corpo tomba na cadeira. As pálpebras se colam. Talvez uma soneca…
Noites de lua cheia costumam guardar surpresas e desconfortos. Que poder tem a lua sobre as expectativas humanas e o bem estar das pessoas? Uma hipótese: a luz que afasta a noite e quase traz de volta o dia aviva a sensibilidade. “Venha ver, fulano, que lua!” “Peraí, deixa eu pegar o celular…” “Que foto! Vai lá pro face!”, “Lindaaa!”
É nos olhos voltados ao alto que a lua se mira. Sou seduzido pela aura romântica e me contenho pra não tascar um beijo na minha ex, tão longínqua ao meu lado. Ah, o jantar! E o vinho, então? A luz da lua clareou-me: tudo armação pra me fisgar outra vez, conclui um pequeno lúcifer cerebral. Fecho os olhos, apago a lua e volto a meu lugar na mesa e ao meu prato perfumado pelo alecrim e colorido pelos acepipes.
Acepipe? É o vinho novamente. Emerge num clarão o verso drummondiano: “mas essa lua, mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo!”. Taí: um leitor não cai tão fácilmente na rede de intrigas. Na verdade, ele cai mais facilmente das nuvens do que do terceiro andar. Agora baixou o irônico Machado. Vou parar, antes que a biblioteca comprima um pouco mais o que sobrou de meu cérebro.
As noites costumam pregar peças cômicas de um ato ou originar uma imensa tragédia em cinco atos, prólogo e epílogo! Acima de tudo, elas carregam em seu útero medos e mortalhas, luzes e solidões. A noite chega e os mistérios se expandem.
Experimente, leitor, marcar um evento qualquer enquanto o sol aquece e os pássaros cantam. E marcar o mesmo evento nas horas em que as galinhas dormem. Casamento, por exemplo. Uma amiga de muitos anos casou de manhã. Os convidados chegaram atrasados, com cara de despertador e boca de café tomado às pressas. Nem o almoço prometido e avisado botou o ânimo pra cima. Ao contrário: os convidados comeram e voltaram pra casa rapidinho, pra terminar o sono interrompido. Nem mesmo as crianças se divertiram. Pensavam brincar antes dos comes, mas os pratos corriam o risco de esfriar. Esperaram brincar depois dos bebes, e os pais se mandaram para o lar aconchegante.
Ah, mas casar à noite tem mais encantos! Dorme-se à tarde, come-se um lanche, porque o jantar vai demorar infalivelmente. Dá tempo de deixar o terno impecável, de escolher a gravata, de combinar sapato e meia. A acompanhante passa o dia no salão e retorna irreconhecível! As crianças ficam elétricas, energizadas pelas expectativas da noite sem hora pra acabar. Até o branco do vestido da noiva fica mais branco! E o futuro maridão adquire uma respeitável face responsável (mesmo que a festança depois acabe por fazê-lo parecer um adolescente cheio de malícias e vontades).
Casar à noite tem a ver com pecados supostos e cenas eróticas ardentemente entrevistas e desejáveis: e não penso apenas nos noivos. Os convidados, movidos pelo mito das cinderelas e príncipes guerreiros, parecem prometer cenas das mil e uma noites em curtas passagens por camas burguesas. Ah, casar à noite é pedir luas cheias, brilhos nos olhos, surpresas e armadilhas…
Lembro-me, antes de beber mais um copo de vinho, que me casei em noite de Superlua. Deu no que deu. Continuo a fazer fotos para o face e nem vejo a face da ex, obnubilada pelo porre homérico em andamento.
A vida, triste quimera, devora com suas cabeças horrendas qualquer frágil vislumbre de felicidade existente neste solitário descasado. Antes que meus olhos se fechem para o clarão da lua, lembro mais uma vez a esplendorosa noite de verão, o céu estrelado, a brisa suave, sons de valsa nupcial e uma enorme bola de prata a sorrir cinicamente lá no alto.
Pensar era atividade para a qual nunca tinha tempo. Melhor não pensar e deixar que os outros lhe dissessem o que fazer. Como resolver os problemas. As atividades do dia seguinte.
Já na infância havia descoberto que o pensamento próprio pode trazer problemas. E que sempre é pura perda de tempo. Na escola, toda vez que o professor pedia uma solução, uma comparação ou argumentos, ele se fazia de ausente, escondia-se atrás dos colegas, copiava descaradamente as respostas – em livros ou nas provas dos vizinhos. É verdade que poucos professores na época pediam aos alunos que pensassem. Achavam que era melhor só ter respostas iguais às palavras dos livros. Sem mudanças.
Em casa, nem precisava ficar se escondendo. Os pais determinavam, mandavam, exigiam. Era só obedecer. Sem reclamar. Fazer sem saber porquê. Não ter respostas e não reclamar. A vida seguia tranquila desse modo.
Assim, já adolescente, esperou que os pais resolvessem se continuava a estudar ou iria trabalhar na oficina mecânica do Deco. Foi trabalhar. Até achou bom: teria dinheiro para as matinês, para as balas azedinhas, e, futuramente, para o cigarro.
O pai é que tinha ambições: queria ver o filho logo, logo longe da oficina. Quem sabe ser office-boy no banco ou no escritório do Dr. Darcy. Podia ser um bom começo. E obedecer era uma das qualidades do seu menino.
A mãe sonhava com netos e um a menos na casa, para aliviar o serviço. Não perdia a oportunidade de chamar a atenção do filho para as garotas que desfilavam pela calçada. Elogiar a Maria pela beleza, a Dalva pela elegância, a do Carmo pelo recato e pela religião. Quem sabe ele não poderia ir até elas, fazer um elogio, puxar conversa? Afinal ele já tinha um emprego, estava quase na idade de casar. Contando o tempo de namoro e de noivado, ia estar bem na época de assumir uma família.
Convencido pelo pai, arrumou emprego no escritório. Descartou o banco porque para os números da matemática precisava pensar. E Dr. Darcy só queria que ele fizesse coisas e não pensasse.
Um dia, esbarrou na Elaine: foi olhar e gostar. Ela pediu para casar em maio, mês que achava lindo demais para usar branco e um buquê de flores. Também escolheu a casa, decidiu sobre os móveis e bateu o pé para que ele usasse um terno de linho azul marinho no casamento.
A festa ficou por conta dos pais dela e dos pais dele. Só precisou dizer o sim. Era o que tinha de fazer e fez.
Os filhos vieram, mudou de emprego, foi um funcionário padrão, deixou a educação dos filhos por conta da Elaine. Os dias eram iguais. Às vezes a mulher resolvia que deviam ir para a praia: ele cuidava do carro, juntava dinheiro para as despesas, embarcava a família e desciam para o litoral. Subiam de volta, sem o dinheiro, com a pele corada, os meninos amuados e a mulher sorrindo. Até a próxima viagem.
Os anos não mudaram o homem que não gostava de pensar. Nem quando baixou ao hospital com um câncer no rim pensou que poderia morrer. Tudo se resolveria bem. Porque o médico disse que logo ele estaria curado. Não se curou.
Pouco antes de falecer, pensou na vida tranquila que havia levado, nos filhos criados e na mulher, ainda bonitona, que iria deixar. Como um raio, pensou: e se a vida tivesse sido diferente?
Não deu tempo de responder. Fechou os olhos e se deixou ir. Tinha certeza que a mulher haveria de cuidar bem de seu enterro.