Marta Morais da Costa

Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha
(Caetano Veloso)
Nos guardados da memória, as canções da adolescência ocupavam muitas gavetas.
Sons e letras, nomes e fatos formavam um capital inesgotável. A sem-censura adolescente nada sabia de timbre ou qualidade de voz. Soprano ou barítono eram apenas estrangeirismos e esquisitices de quem pavoneava conhecimentos musicais.
Gostava mesmo era do rádio ligado o dia inteiro, fazendo companhia. Em volume alto nos programas de calouros e muito íntimo, quase sussurrante, nas radionovelas. Alguém a lhe contar em segredo histórias de amor e ambição, que criavam a vilania. A posse como jogo já se chamuscando de infernos antecipados.
Mas era a música a paixão mais verdadeira. Cantava interiormente ao saudar o dia, a cozer as refeições, ao chuveiro. Dançavam os sons em bailes silenciosos.
Assim, dia a dia, formavam-se alianças sonoras e letras em conúbio nos cartórios da memória.
Ela chorava amores incompreendidos sem compreender o que era amar um homem. Somente sabia de sua indesejada solidão. Pai e mãe há muito morando no cemitério nos limites da cidade. Parentes nenhuns: se os tinha, eram desconhecidos, ausentes. O trabalho nômade de casa em casa não criava liames nem companhia.
Mas topou na esquina, em um domingo, com a realidade da fantasia. era músico, violonista, cantor nos bares da vida. O amor foi chama devoradora em um inferno de ciúmes.
Ele cantou, ela mergulhou nos sons e os dois se fizeram uma canção nova.
Juntos fizeram serenatas e duetos, desafinaram e concertaram. Árias em atrito, fados em lamúrias, modinhas em consonância, sambas em epifania. Mas chegou o desacordo do rock, chegaram as queixas do soul, as controvérsias do pop.
Hoje, cada um em seu ritmo díspar, segue a vida cantando em palcos incompatíveis.
O músico se foi, mas a música permanece.
Agora, na casa durante o dia acalantos ressoam, secundados por vozes infantis. O pão é pouco e vem acompanhado de choros de fome e do planger de cordas. Choros que ela compreende, harmoniza e acarinha.
Filhos da música e da euforia vêm partilhar as gavetas da memória: a cada um o seu ritmo, a cada um o seu canto, a cada um o sol e o escuro. E ela canta.