Dá arrepios de dó*

Marta Morais da Costa

  • Olhar para a casa do joão-de-barro que, por falta de proteção, mudou-se para a periferia. Talvez seja obrigado a voltar.
  • Reencontrar o jardim da casa de infância transformado em pátio de estacionamento, todo revestido de concreto e sujo de manchas de óleo.
  • Descobrir que o tempo apagou aquela tímida mensagem escrita a lápis dizendo que eu era a razão de sua vida.
  • Vasculhar absolutamente todos os recantos e caixas e pacotes e gavetas e não recuperar aquela foto de debutante em que alguém escreveu: “pose de miss, corpo de miss”.
  • Descobrir naquela primeira edição rara do romance experimental de Valêncio Xavier que as traças- leitoras o devoraram.
  • Verificar que os apelos cenográficos e hipócritas levam mais pessoas a acreditar em ideias absurdas do que os sábios e sua ciência da vida conseguem persuadir.
  • Encontrar entre as pedras do quintal o corpo da sabiá-cantora, mutilado a pedras de um estilingue de um menino que considera a natureza sua posse exclusiva.
  • Ver na smart TV LED, 65 polegadas, sistema 8 K, Dolby Audio, a derrubada veloz e definitiva das árvores centenárias da Amazônia.
  • Ouvir dois dias e noites a fio o uivar do cão dos vizinhos, preso em casa enquanto eles se divertem na praia.
  • Saber que, no restaurante de luxo, a comida jogada no lixo alimentaria famílias famintas em casas, apartamentos e casebres da cidade que habito.
  • Conhecer a realidade da leitura neste país: onde ela inexiste, prolifera a ignorância, mãe dos crimes e das tragédias; onde ela existe, prolifera a preguiça, a linguagem pobre e a recusa do livro denso.
  • Constatar que, em meados do século passado, a remuneração de juízes de primeira instância e de professores se aproximava. Hoje há anos-luz de diferença entre eles.
  • Passear os olhos pelo Instagram, Tik tok e outras leseiras, denominadas por cabeças encartoladas de “redes sociais”, e descobrir que as pessoas se envergonham de serem fotografadas lendo: preferem biquínis, músculos e cenários.
* Dó, dor, doença, 
tormento sofrimento, 
pesadelo, desconforto, 
angústia, agonia.

Estar bem, estar mal

Marta Morais da Costa

Não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe. Ou será: não há mal que sempre dure, e bem que nunca se acabe? Seria otimista e asseguradora a primeira frase? Seria mais moralizadora a segunda? Afinal, ficam no ar e na mente as últimas palavras da frase, e as primeiras precisam ser pescadas de volta. O bem que nunca permanece e se vai com as esperanças de alívio existencial, deixando um rastro de perda acentuada, esse parece combinar melhor com as notícias que nos abalam desde as primeiras horas da manhã.

Em cada nascer do dia, juro a mim mesma que vou encarar a vida de forma mais leve, porque, afinal, ela está cada dia mais curta. Mas é promessa falsa como nota de três reais ou, atualizando, como discurso político em trem elétrico, em palanque desabante ou nas redes-de-sócios.

Por exemplo, levar uma mala leve em viagem lépida de leva-e-traz. Rir sem me preocupar com a foto que me registra mais amalucada, dançar em horas incomuns e de forma despreocupada, sem modismos e gestos previsíveis. Maratonar aquela série moderninha de mortos-vivos (e são muitos os de verdade) ou bocejar nos filmes de márveis voaçantes e sempre-os-mesmos. Levar o cartão de crédito para o shoppping  e voltar com a conta quase zerada e uma tonelada e meia de sacolas, cheias de badulaques.

Afinal o que é leveza na vida? Consulto psicanalistas, geriatras, astrólogos, minha sábia mãezinha, aquela amiga amadurecida pela experiência, búzios e livros: o que vem a ser vida leve?

As respostas demonstram o quanto o bem e o mal, além de efêmeros, são um bocado diferentes em cada analista e testemunha. A vida é leve quando só faço o que me dá prazer. Ou o que me deixa feliz e em paz. Ou a sensação que me invade depois de atitudes de desapego: de coisas, de desafetos, do passado, de culpas – mesmo que apenas supostas.

Leve como o ar, as borboletas, os pássaros, os lírios do campo. Leve como Julieta, Orfeu, Eros. Leve como a pluma que o vento vai levando pelo ar. Leve. Leve.

Tambores ressoam: leve pode ser forma de levar. Levar a vida leve. Levar da vida o que é breve. Levar na vida o que me faz levitar: um carinho, um sorriso e aquele lugar. Oi, leva eu(minha saudade)/ Eu também quero ir/quando chego na ladeira/ tenho medo de cair”, na canção de A. Cavalcanti e T. Guimarães, de outras levas .

Será que se pode afirmar que não há vida pesada que não se acabe, nem vida leve que sempre dure? Ou invertendo posições?

Talvez Lenine:

“Há de ser leve
Um levar suave
Nada que entrave
Nossa vida breve
Tudo que me atreve”

De acordo, poeta. Mas onde acho essa utopia de nenhum entrave? Olhei em volta, indaguei, passei pente fino na biografia, lavei as sujeiras do presente e do passado, botei o coração “comovido como o diabo” e travei o exterior. Aí pesou, num viste? Ficou leve e sem sal, tipo arco-íris fugaz, voltei pra mim e decidi: vou enfrentar o mal que acaba e o bem que não perdura.

Afinal leveza é para os anjos e santos, e eu habito muito longe deles. No meio de trovões e tempestades. O peso na alma não acalma, nem alivia. Mas tem dias que a leveza trava e fica lado a lado com a fadiga. E por alguns momentos, seguem juntas, “mão na mão, pé no chão”, cada qual com seu tempo de duração e juntas tecendo o compasso da vida: breve, tensa, leve, densa, breve, tensa, leve, densa…

Foto por Pixabay em Pexels.com

“De volta pro meu aconchego”

Marta Morais da Costa

Tem algo mais gostoso quando, ultrapassado um período de distopia, voltamos, mesmo que de modo fugaz, a um estado de acomodação à rotina? Buscamos nesse reencontro as forças do passado para um salto à frente, ousado, se possível mais feliz.

O som que ouço imaginariamente nasce de Dominguinhos e Elba Ramalho, em gravação conjunta de “De volta pro meu aconchego”, em uma das demonstrações da força e poesia de nossa música popular:

É duro ficar sem você, vez em quando
Parece que falta um pedaço de mim
Me alegro na hora de regressar
Parece que eu vou mergulhar
Na felicidade sem fim.

Aquele viver intenso de pulmões, olhos e coração no reencontro da cidade natal, da casa em que se morou na infância, no encontro com aquele velho e querido amigo desgarrado pelos caminhos divergentes da vida, a visão daquela foto de quem invadiu nosso coração e nele gostosamente se instalou – mesmo que por um tempo efêmero. Afinal o amor pode ter dias contados ou décadas encadeadas: no fundo, lá no âmago, é o mesmo “fogo que arde sem se ver”.

O aconchego da roupa caseira, o toque, as marcas do uso constante, o desbotado de cores que se perderam no tempo.

O odor do tempero cotidiano da comidinha frugal, sem harmonizações amadeiradas ou de frutas vermelhas e tabaco, sem talheres de prata e porcelana chinesa: o prato de cada um, do seu jeito e gosto, que conhece até a quantidade necessária e a disposição dos alimentos em seu interior.

A geografia da casa, quase tão imutável quanto o Himalaia, os cantos onde sabemos que se aninham aranhas e os vãos mais escondidos onde o pó fez sua morada. A mancha no assoalho a lembrar do dia em que, por descuido ou intenção…

Os objetos em sua disposição costumeira, a esperar aquele dia especial, em que a vontade assume ares de amena loucura e desaba sua disposição de mudar o cenário, de desapegar, de trazer ao ambiente outras visualidades e enquadramentos. Mas pra que tudo mude, é preciso que tudo esteja no mesmo lugar.

É desse paradoxo que vive o aconchego: saber que pode ter sido quase duradouro, quase eterno. Ao nos receber, entretanto, o aconchego se apresta às boas vindas, mas ele mesmo se prepara para as boas idas, para as trocas, para o que terá uma encadernação nova.

O “pedaço de mim” reencontrado abalroa os demais pedaços que, ao regressarem, irão contaminar a expectativa de “felicidade sem fim”. Porque felicidade é assim: fugaz, finita, incompleta, desaconchegante. Uma utopia.

Mas o que é a vida senão visões utópicas em choque com fatos distópicos?

Tal qual a literatura, a superação sucede ao fracasso que sucedeu ao desejo utópico. Na gangorra de perdas e ganhos, ora me alteio, ora desabo.

Neste momento, especialíssimo, alegro-me em “estar contigo de novo”, porque, afinal, da vida noves fora, essa é “a paz que eu gosto de ter”.

Foto por NHP&Co em Pexels.com

No escurinho da gaveta do tempo

Marta Morais da Costa

O avanço do tempo de vida traz amarguras e algum consolo. Não me abandone, caro leitor, pensando que vou falar das tristezas e dores da velhice! Vou não.

Já deixei essa baba de tristeza em tantos textos… E voltarei a deixar, não tenho dúvida. Mas hoje eu quero falar de outras marcas do tempo.

Descobri que cada vez mais gosto de esquecer. Principalmente esquecer onde guardo coisas. Aliás, coisas-objetos é o que mais acumulamos ao longo do tempo. Só perde em quantidade para os amores.

Onde deixei aquele colar de contas marinhas que ganhei da Anita? Minha cabeça anda avoada: esqueci onde deixei a chave que abre a porta do armário com os presentes das bodas de prata! Em que caixa guardei aquelas fotos da viagem ao México? Meu filho pediu emprestado o cabo HDMI para que ele possa ter acesso ao streaming de filmes: sei que coloquei em algum lugar da casa, mas onde?

Não pense, leitora crítica, que se trata de desorganização mental ou doméstica. Tenho lugares e caixas e baús e gavetas e armários etiquetados para facilitar a identificação dos conteúdos e me poupar o tempo absurdo de sair procurando pelos cantos da casa. Que nem são tantos assim, dada que a casa é um pouco mais do que abrigo para duas pessoas. Trata-se, antes de tudo o mais, de lapsos de organização. Foi naquele segundo antes de pegar o carro e sair meio atrasada para o compromisso: larguei na primeira gaveta que encontrei. Mas em qual delas? 

O telefone chamou justo na hora em que estava com o rolo de barbante na mão: deixei em algum lugar para depois colocar no armário dos utensílios de uso imediato. Mas onde foi esse lugar?

O recibo do pagamento do imposto que trouxe do banco ficou dentro de qual livro? Coloquei na pasta de documentos adequada? Deixei na gaveta do armário junto com as compras e as notas de caixa, para depois dar um destino correto?

Mas mesmo nessa mixórdia cerebral, há dias em que resolvo dar um basta na bagunça. Para que servem as etiquetas senão para organizar o caos? Levanto da cama, ponho primeiro o pé direito no chão, lavo o rosto com o melhor dos sabonetes e enxugo om a mais macia das toalhas. Um trato caprichado no cabelo – rebelde, como sempre – e macacão de operário para dar conta do que, sei, será um trabalho braçomemorial dos bons!

Caderneta para registrar achados e destiná-los à etiqueta correta. Luvas para abrir gavetas sem temer picadas ou beliscões. Chaveiro de mordoma de mansão de 400 quartos. Óculos de proteção contra pó de guardados, mas com lentes de aumento para ler até as letras minúsculas de antigos impressos perdidos em arcas de tesouro. Uma garrafa de água Perrier para enfrentar a sede de organização com um pouco de classe. E um enorme cesto com compartimentos simétricos (olha a virginiana aí, gente!) para ir acomodando os achados-ex-perdidos. Ah, e um belo capacete colonial, daqueles de explorador inglês na Índia; afinal, caçar perdidos merece ser feito com aplomb.

Foto por Francisco Jacquier em Pexels.com

Aí é que vem a consolação, anunciada lá em cima.

Já na primeira gaveta reencontro aquele convite para aquela festa naquele clube onde começou aquela doce amizade. Embaixo dele, a chave do baú de bijuterias que era pra ser de minha neta, mas sem chave, nada feito. Agora já tenho um presente de aniversário completo! Que consolo!

No armário, lá no fundo, fundinho, amassado feito pele de mulher centenária (quase eu), o mil vezes execrado recibo de pagamento da última prestação da bicicleta (hoje parada  e enferrujando no porão) que tive de pagar duas vezes, porque não consegui comprovar. Estava lá, dormindo, aconchegado debaixo do cachecol tri-invernal que deveria ter ido para doação no tempo em que Curitiba tinha inverno.

No pacotinho de celofane guardado com cuidado dentro da caixinha de madrepérola, que abrigou um dia o anel de casamento, a mecha de cabelos de meu filho primogênito, que eu havia prometido dar a ele no dia em que completasse 40 anos, isto é, há uma década e meia atrás!

Mas a descoberta que mais mexeu com meus brios, com a memória falha, com a passagem voraz do tempo, foi a do presente em papel de seda e fita de cetim de um par de brincos comprados em Helsinki para aquela prima apaixonada pela Finlândia, lugar que não teve tempo de conhecer. Brincos guardados para quem não teve tempo também para receber e usar. Escondidos para não alimentar a dor da ausência.

Eu escrevi lá em cima algo sobre consolo. Não lembro mais em que parte deste texto. Não faz mal. Você, leitora atenta, deve saber melhor do que eu onde deixei essa palavra.

Como dizia minha mãe, se está perdido dentro de casa, um dia aparece. O consolo é que esse passado que retorna, sem cobertura, às claras, na levada do tempo, vem embebido de histórias e afetos. Reavê-los é como voltar atrás, viver novamente, querer outra vez.

Hieróglifos da vida.

Uma noite, uma fala: poesia só se cala é dentro do peito

Marta Morais da Costa

 “O verso é um doido cantando sozinho/ seu assunto é o caminho. E nada mais!/ O caminho que ele próprio inventa.”

(Mário Quintana)

Noite de maio, noite de outono, noite de lua crescente.

Estamos em ambiente universitário. Como em outras noites e outonos, me posiciono para uma conversa com público adulto de possíveis formadores de leitores.

Não para formar no sentido de colocar em fôrma, mas de pessoas que venham a tomar forma, como diferencia Eliana Yunes. E nessa diferença cabe a diversidade da Pedagogia. E da leitura, evidentemente.

Bem que eu sabia que escrever poesia tem um quê de encantamento.

Mas descobri mais uma vez que, em certa noite de outono, sem varinha e sem poção, a poesia “se fez carne e habitou entre nós”.

Porque a poesia envolvente se torna semente e, bem adubada e cuidada, floresce.

Assim, pegando um verso ali, uma estrofe aqui, a imagem em fuga e a sonoridade pródiga, a leitura em voz alta do poema desenhou em graves e agudos a música das esferas da beleza literária. O público veio comigo, sem deixar de ser ele mesmo.

Houve quem resistisse: não gosto de ler poesia é coisa de mulher e criança acho difícil tô nem aí pra poesia coisa chata…

Meia hora depois, olhos em brasa, ouvidos de quero mais: por que parou? parou porquê?

A mágica humana da escrita em versos que conversa com cérebro e coração aproxima, aquece, estimula, acolhe, desfaz muros, convida pra dança, faz do adulto criança.

Assim, em cumplicidade, a fala sobre poesia a um público atento deu razão e afirmou em mim a história de uma escrita em versos, a nova aventura, a viagem em águas desconhecidas.

Lembro fases e faces dessa escrita.

Botei beca pra escolher o título. Batizei com a prática e fiz crescer com a poética: No que der e vier a poesia põe a colher.

Cravei o ritmo, remexi o provérbio, convidei o leitor.

“Toda poesia é sutil ou não é poesia. Existem sempre muitas janelas fechadas no caminho de um poeta, mas ele, em vez de se espantar, escreve.” (José Castello)

Escrevi, coletei, botei ordem, trouxe ilustração. Vieram Márcia e Naotake. Veio a Insight.

Nasceu o livro: suas janelas, gavetas, quintais e caminho.

Vieram os amigos, abraços flores conversas de saudade risos de bom encontro: e  o livro ganhou asas, encantado nos olhos de seus leitores.

Agora ele está por aí, no mundo, crescendo criança-adulta. Deixando a casa natal para viver no meio de todos.

Que meu livro em seu caminho se espante, encante e seja reescrito.

Ficarei aqui, tomando os cuidados amorosos para que cresça e se fortaleça.

Um dia mercurial

Marta Morais da Costa

Foto por Pavel Danilyuk em Pexels.com

Meu horóscopo vem avisando há dias que devo me precaver com a invasão do planeta Mercúrio na trajetória de meu signo, o que me obrigará a rever conceitos e a abrir mão  – e cabeça – em relação a meus valores morais e costais e a minhas posições pessoais em relação a crenças e falas.

Um aviso pra lá de sério; um alerta de respeito. Afinal, depois de tantas décadas pensando e discutindo e esquecendo e retomando e assumindo, chegar ao dia de hoje com a disposição de ainda mudar é projeto para mais de uma vida.

Nessa toada de precaução e cuidado fui ler os jornais do dia. Vício adquirido há décadas, do tempo do jornal impresso que saudade me dá. Não precisei de longas horas, nem de choques de realidade ou resistência a horrores. Encontrei em O Estado de São Paulo, fartamente acusado de ser um jornal de direita, uma pequena reportagem de Síbélia Zanon: “A mente aceita só aquilo em que acredita, dizem cientistas”.

 

Essas coisas da mente cada vez mais entram em meu cardápio diário de preocupações. É evidente que tem a ver com o desgaste dos anos e com o receio de perda das faculdades mentais. Nunca se sabe que qualidade de futuro terei. É bom, ao  menos, ter um pouco de informação pra não dizer, mais tarde, no auge da frustração “eu não sabia”.

 

Li a reportagem com zelo e sofreguidão. Lá está escrito que cientistas – logo pessoas de densa seriedade, em suas pesquisas descobriram, na Universidade de Stanford (USA) em testes “com estudantes universitários que tinham opiniões opostas sobre a pena de morte. Com base em dois artigos falsos – um que argumentava a favor e outro contra a pena de morte –, os estudantes apoiaram justamente aquele artigo que confirmava sua crença original”. Os cientistas concluíram “que ter as certezas contestadas serviu apenas como reforço para as próprias convicções.” E denominaram “viés de confirmação” essa característica mental.

Muito bem. Cientistas brasileiros da área da informação atestam que, mais do que confirmação, existe, por força das redes digitais e da circulação dos mesmos valores e crenças, o nascimento de uma “identidade prèt-à-porter”. Para quem não viveu essa moda e nem fala francês, a expressão significa algo como uma identidade que vem pronta para vestir, isto é, cujos padrões são pré-estabelecidos em grupos e bolhas de sócios das mesmas ideias e valores.

 

Foi o que bastou para que meu descanso de sábado se transformasse em desassossego de final de semana.

 

O que pretendemos na formação de leitores de literatura se não é a convivência com a diversidade, o descobrir que pensamentos antagônicos existem, que as pessoas são diferentes por natureza em seu físico e pela cultura em sua mentalidade?

 

Nesse desassossego caíram sobre mim todos os ssss de minhas pobres prédicas em favor da diversidade. Segundo a neurocientista Cláudia Feitosa-Santana,  “as conversas não ajudam a reduzir a polarização porque as pessoas acham que o diálogo está a serviço de desconstruir o argumento do outro.” Voaram pelas janelas e portas a importância que atribuí às rodas de conversa na formação de leitores.

Mais do que isso, a “eterna vigilância” das bolhas e do controle googlístico sobre o que nos interessa, restringe nosso pensamento àquilo que nos satisfaz e espelha.

Estamos, por consequência, fadados a conversarmos e vivermos segundo critérios e escolhas repetitivas? Poderemos, enfim, respondendo a alguns sites que nos perguntam se somos robôs, responder afirmativamente: sim, sou o robô FywXzV 5290941086!!

É verdade que não pretendo atravessar o planeta Terra só na planície, com algum planalto isolado e intrometido, rumo a um horizonte mais reto do que as linhas de meu monitor. Nem desobedecer a meu médico e fugir do posto de saúde com medo de virar jacaré ou ser ferido por uma agulha contendo um DNA invasor.

Mas reconheço que nem sempre conhecer a bolha opositora, quebrar barreiras e polarização é um estratagema recomendável para enfrentar o brandir de paus, pedras e balas ou para resolver, num ato de extrema arrogância, ignorância e covardia, abolir o tempo do rei de um relógio que nem digital era. Talvez porque, em sua ignorância e oclusão mental,  desconhecesse algarismos romanos e ponteiros e pensasse que todo dourado é ouro de tolo.

Enfim, sabendo de identidades prêt-à-porter, de vieses de confirmação, bolhas e reforços da própria opinião, cabe observar, analisar e, se for preciso, reformular metodologias para que o viver a beleza e diversidade da literatura, não seja uma atitude empática como a que descreve a reportagem, e que usar a palavra empatia não signifique cobrar empatia do outro, sem que nós mesmos sejamos empáticos.

Enfim, descobri que meu horóscopo estava certo: Mercúrio  bagunçou meu dia e minha mente.

 

Fonte; https://www.estadao.com.br/alias/a-mente-aceita-so-aquilo-em-que-acredita-dizem-cientistas/

 

Quando o ano principia

(…)

Eu sei e você sabe
Que a distância não existe
Que todo grande amor
Só é bem grande se for triste

(…)

Assim como o oceano
Só é belo com luar
Assim como a canção
Só tem razão se se cantar

Assim como uma nuvem
Só acontece se chover
Assim como o poeta
Só é grande se sofrer

Assim como viver
Sem ter amor não é viver
Não há você sem mim
E eu não existo sem você

 (“Eu não existo sem você, música e letra de Tom Jobim)

Não sei o porquê, mas sei que ela veio. Não sei se eu assim o queria, mas sei que ela veio. Não sei se será útil, mas sei que veio.

A canção de Tom Jobim surgiu como sonoplastia do desejo de escrever a respeito da chegada de mais um ano em nossas vidas.

Quando pesquiso biografias, na infinita curiosidade de saber da vida dos outros e de trazer o que viveram como lição para minha existência, encontro invariavelmente ao lado do nome a informação sobre o ano de nascimento e o da metamorfose para algum estágio que não sei como é. Embora acredite que exista.

É porque são datas extremas e limites do conhecimento racional. Antes de nascer, uma promessa. Depois, ao final, um desejo, em especial de quem fica. Mas as datas anuais ali estão e ali permanecerão. É verdade que os calendários mudam, adaptados a culturas e a decretos do poder. É verdade que nossos mais que antepassados, vivendo em tempos de pouco registro e raros depoimentos, ficam por vezes em limites largos como IV a.C. e século XIV ou a datas cambiantes, como Gutenberg, Dante Alighieri e Shakespeare.

Seja como for, nem sempre se dão importância aos dias, mas os anos, ah, esses, reinam absolutos. Não é raro ao lembrar o passado, que seja ouvida a frase-quase-desculpa não lembro o dia – ou o mês – exato, mas sei que foi em 1954 (ou 1985, ou 2016).

Os anos são imensas unidades de bilionésimos de segundos que escorrem mais velozes do que as corredeiras do rio Iguaçu ou do Sena.

E pesam nos corpos humanos, fazendo com que a lei da gravidade se altere ao longo dos anos. É verdade: mais grávidos e mais graves ficamos à medida que acumulamos primeiros de janeiros. Além disso, morre-se mais jovem em 31 de dezembro do que no dia seguinte, assim o provam as biografias.

Por isso, votos de Feliz Ano Novo têm suma importância nas biografias. Não se trata apenas de etiqueta, afetividade ou carinho. A data tem a ver com saudar a possibilidade de transpor em vida um tempo de dias difíceis & venturosos, de vitórias sobre si mesmo & de derrotas para os fatos da vida. Além de ter podido ultrapassar os longos e tediosos dias de bruma e solidão amarga. (Lembro aqui que existe uma doce solidão que transcende tempos e perpassa os refolhos da alma.)

Aprendi a considerar o primeiro do ano um evento extraordinário porque revela alta carga emocional & exercício de memória & balanço de perdas e ganhos. E, acima de tudo, pela ocasião datada, prevista e necessária das faxinas mentais, espirituais, afetivas & materiais.

É Janus, o deus romano que olha para trás e para frente; e nessa bifrontalidade instaura uma terceira margem. A que compara & une & amalgama o que foi & o que será.

Vá chegando, Janeiro, coloque mais um ano em minha biografia, mais pontes em meu presente. Pontes a unir que marcou o passado & todos os desejos de melhoria para o futuro. Chegue, assente-se no pátio da memória e vá construindo novos fatos, destruindo preconceitos, dando vida e forma a expectativas, boas e más. Acima de tudo, Janeiro, confirme nesta cronista o conceito de que nem todo amor tem que ser triste e, menos ainda, que nem todo poeta tem que sofrer para ser bom poeta.

Confirme, Janeiro, que mesmo o sofrimento mais atroz pode ser filtrado pelo prazer da escrita e que a alegria é companheira inseparável (silenciosa e clandestina), à espreita em todos os momentos ruins que, por sermos humanos, vivemos.

Repita, Janeiro, que o passado ensina a quem é bom aluno; que o futuro em suas utopias sustenta o presente, colorindo, arejando, criando espaços para alguém ser alegre & ser triste.

Venha, Janeiro, mais uma vez, acrescentar vida aos caminhos da vida, criar mais canções de afirmação, repletas de amor & poesia, amantes & poetas. Porque todos os caminhos me encaminham o viver.

Marta Morais da Costa

Bem que eu quis escrever sobre o Natal

Marta Morais da Costa

Pensei em escrever um texto, de um formato qualquer, sobre o Natal.

Talvez um conto, desses que narram histórias emocionantes sobre possíveis milagres de papais e mamães ou do Noel ou de Jesus Menino.

Natal é uma data épica. Ou lírica, se pensamos nos solitários e nos memoriosos de infâncias.

Na falta de imaginar um “como se”, pensei em um poema de muitas estrofes, em que coubessem pessoas queridas e presentes, árvores verdejantes e multicoloridos enfeites, um montão de comida – para ser jogada, talvez, no lixo, por excesso de calorias: ai, os famintos, nem migalhas herdarão. Ah, mas haveria contenção métrica, metáforas deslumbrantes e um par de estrofes de tirar o fôlego dos leitores.

O poema, contudo, travou no oitavo corte de um verso decassílabo: o repertório léxico não se deu o humano prazer de solidarizar-se com a poeta buscadora e perdida e abandonou-a no dátilo incompleto.

Quem sabe uma crônica? Esse gênero tão incompreendido e que parece um “mafuá de malungo” (grata, Bandeira, pela generosa permissão do meu roubo titular!). Nessa feira de ofertas desencontradas, enfiam-se estilos, narrativas tortas, pretensiosos escritos que semeiam a discórdia teórica e colhem os ventos das liberdades sem eira nem beira.

Assim, fiz chover uma narrativa em primeira pessoa, amorosamente bordada de memórias infantis de natais felizes e infelizes, com o objetivo de emocionar os leitores adultos de hoje, que juntariam às minhas as suas lembranças de natais para rir, chorar copiosamente ou sorrir amarelo em razão da lembrança de uma agressiva vergonha pessoal.

Já a vergonha alheia me lembrou de escrever uma antologia de piadas natalinas para serem contadas à mesa do banquete substitutivo da Missa do Galo. Anedotas provocadoras de explosões de farofas e pernis e perus renascidos depois da combustão. Seriam piadas castas em respeito à data festiva de um nascimento de renovação e confirmação de contratos religiosos.

Também deixei de lado: há uma face moralizadora em todo piadista de plantão.

Quem sabe uma página em formato de diário, em que pessoas reais vivem momentos imaginários, coloridos pela pátina de uma falsa escrita antiga dos tempos do eu-criança. Um diário permitiria narrativas, as homenagens aos vivos e às novas estrelas em outros céus, as correções da realidade trágica de natais coloridos pelo vermelho dos sofrimentos censurados e até mesmo as mentiras contadas às crianças, crentes em falsos doadores dos presentes desejados. Uma página de um diário de boas intenções, de pessoas dadivosas, de manjares de mel e ambrosia, de noites em comunhão, de desejos formais de futuro abundante em prêmios e paz.

Nem para diário natalino as teclas do computador se mostram buliçosas e operárias. Os dedos supreendentemente ficam pousados inertes sobre letras incapazes de se combinarem em uma frase com um mínimo de coerência.

Escrever – por que não? – um cartão de Natal ao menos, que expresse a ansiada metamorfose de tempos duros e cruéis em uma época de alegrias e desejos de que tudo dê certo (mesmo o que sabidamente dará errado). Um cartão colorido, corações à beça, vermelhos e verdes vinhetando as palavras-chave, emoticões e gifes salpicando a página, substituindo as palavras que, sempre indiferentes e obstaculizadoras, teimam em não sair. Um cartão sonoro, à moda e com auxílio da Célia Cris, com uma música sugerida pela Rita, que possa substituir em sua volúpia sonora a falta de inspiração para um texto natalino.

Nem cartão, nem cartinha: nada se faz substancial e merecedor de estar em letras e palavras.

A única certeza é que continuarei, insistente, a busca por uma escrita que me diga, que diga em eco a quem gosto de boa e demais, que bendiga tempos vindouros, que consiga fazer acreditar que esta escriba ainda pode nascer, verdadeira e consistente, em um momento qualquer, de dia ou de noite.

Talvez até em uma noite de Natal.

 

Foto por Aleksandr Slobodianyk em Pexels.com

Antigamente

Foto por Pixabay em Pexels.com

Bateu fundo o desejo nostálgico de escrever sobre um tempo passado e que dificilmente retornará. Um pouco de biografia, um tanto de memória, muito de imaginação, alimentados por relatos orais de outros e pelas páginas lidas em fontes diversas.

Nada como recordar o passado sem nunca poder recuperá-lo de verdade: ilusões de sermos testemunhas fiéis de qualquer fato observado. Nós, sempre nós, coletivos, a cultivar uma pretensa individualidade impossível.

Vamos, no entanto, em busca desses utópicos tempos memoriais.

Antigamente os sinos badalavam para marcar o inexorável escorrer do dia e da noite. A marcar missas e enterros, festas e quaresmas, centros da vida social e recatada em aparência.

Havia o ranger das rodas das carroças, algumas explosões de motores de automóveis, a atingir velocidades surpreendentes de 80 km horários!

Compravam-se alimentos a granel nos poucos armazéns de famílias a atender famílias, à vista ou no fio de bigode das cadernetas a fiado. A economia doméstica rigorosa mal permitia a matinê aos domingos. Mas a roupa era sempre asseada, engomada e impecável. Mães e tias estilistas e prendadas mantinham na máquina de costura a pedal a família em sua elegância interiorana.

A família crescia a cada dois anos, como cresciam os seios das meninas e as preocupações de soslaio de pais vigilantes.

A infância ainda não se havia ido de todo e a adolescência não era termo nem impedimento ainda. Era como se a passagem fosse direta da infância para a juventude adulta. Com dois marcos irrefutáveis: o baile dos 15 anos para as chamadas meninas-moças e o serviço militar para os rapagões.  Pórticos para a vida adulta com suas disponibilidades e responsabilidades. Esse duo de –ades não se exercia com igual intensidade nos dois sexos exclusivos (hoje, na multiplicidade de gêneros, palavra consiferada mais adequada e politicamente correta). Rapazes criavam asas e esporas facilmente. As moças ficavam sob as rédeas familiares. Avós, tios e irmãos decretavam costumes em igualdade com os atarefados pais, às voltas com todos os demais filhos e com a subsistência diária.

Nada impedia as brincadeiras de sempre: bola de gude, futebol, figurinhas, bonecas, pingue-pongue, pular corda, subir em árvores de quintais espaçosos e usar rodas de todos os diâmetros. Sem distinção de sexo. Uma infância de brincar com tudo e sem limites de território: em sua contiguidade o espaço mais socializado e socialista das crianças e dos adolescentes.

Um tempo em que a rua só era perigosa em momentos regulados pelo trabalho: a hora de ir para a fábrica ou a lavoura e a hora de voltar para casa, jantar e dormir. Sem televisão nem baladas ou raves: apenas as ondas do rádio e as conversas na cozinha, centro da sociabilidade familiar.

Quermesses da igreja, leilões, rifas, pescarias de bugigangas e músicas dedicadas aos namoricos e amigos, nessa ordem de preferência. Quando sobravam moedas, as matinês de domingo, animadas por filmes lançados há anos nos cinemas da capital.

No mais, a monotonia feliz dos dias regulados, das férias em casa, das viagens raras, dos amigos que só se disputavam por figurinhas e intrigas tolas.

O antigamente se espraia em ações e expectativas do hoje. De tal maneira amalgamou-se na vida interior e na memória, que dá sempre a impressão de ter sido apenas um documento histórico para dizer, entre rugas e cãs, “meninos, eu vi!”. Ou, em dias de mau humor e indignação com o presente, poder dizer-se em silêncio ou como uma acusação ao mundo mudado: “Era um tempo melhor: aquilo é que era vida!”

No entanto, no silêncio da solidão, em conversa com o espelho interior, sei que, verdade da verdade, o melhor mesmo era a idade: os olhos impregnados de jovens aprendizados e a alma aberta a acreditar no que viria.

Andando de banda…

“Do lado esquerdo carrego meus mortos.

Por isso caminho um pouco de banda.”

Carlos Drummond de Andrade

Amigos deveriam sempre estar de chegada. Jamais de partida.

Amigos deveriam sempre dizer alô. Adeus, jamais!

Amigos deveriam poder transformar retratos em cenas vivas; fotografias em revivescências.

Amigos não poderiam ter autorização para irem embora sem estar outras vezes conosco, em casa, na rua, em uma confeitaria, bebericando um café, ou até mesmo, num banco de praça contando lorotas, histórias e falando de amizade sem fim.

Amigos não poderiam partir de supetão: afinal, a amizade é longa porque os anos já pesam e se medem em décadas.

Amigo contador de histórias, não pode partir jamais. Porque não tem como recuperar a voz uma vez solta no ar. A voz não é uma pipa que retorna. Mesmo que o amigo crie pipas e faça de sua voz conto e canto. A voz não é como um livro, que reabro e refaço a conversa.

Amigo com voz mansa, voz de avô cuidadoso, de pessoa encantadora de pessoas, de cuidador de amizades, de cuidador de mentes, de cuidador de corações, ah, este não tem ordem nem licença para partir.

Mas partiu. E deixou amigos partidos. Uma história com fim. Um canto em silêncio. Uma leitura interrompida.

Francisco abriu voo para o além, aonde as pipas não chegam, aonde as histórias são outras.

Lá, juntou-se a outras bibliotecas andantes e irão banquetear-se com seus jeitos inesquecíveis de falar histórias de seus povos, agora mais órfãos.

Francisco Gregório Filho, sua presença na vida de seus amigos será perene, porque é impossível esquecer a generosidade, a fidalguia e a arte de um amigo como você.

Agradeço à vida que me permitiu aprender com você.

Marta Morais da Costa