Antigamente

Foto por Pixabay em Pexels.com

Bateu fundo o desejo nostálgico de escrever sobre um tempo passado e que dificilmente retornará. Um pouco de biografia, um tanto de memória, muito de imaginação, alimentados por relatos orais de outros e pelas páginas lidas em fontes diversas.

Nada como recordar o passado sem nunca poder recuperá-lo de verdade: ilusões de sermos testemunhas fiéis de qualquer fato observado. Nós, sempre nós, coletivos, a cultivar uma pretensa individualidade impossível.

Vamos, no entanto, em busca desses utópicos tempos memoriais.

Antigamente os sinos badalavam para marcar o inexorável escorrer do dia e da noite. A marcar missas e enterros, festas e quaresmas, centros da vida social e recatada em aparência.

Havia o ranger das rodas das carroças, algumas explosões de motores de automóveis, a atingir velocidades surpreendentes de 80 km horários!

Compravam-se alimentos a granel nos poucos armazéns de famílias a atender famílias, à vista ou no fio de bigode das cadernetas a fiado. A economia doméstica rigorosa mal permitia a matinê aos domingos. Mas a roupa era sempre asseada, engomada e impecável. Mães e tias estilistas e prendadas mantinham na máquina de costura a pedal a família em sua elegância interiorana.

A família crescia a cada dois anos, como cresciam os seios das meninas e as preocupações de soslaio de pais vigilantes.

A infância ainda não se havia ido de todo e a adolescência não era termo nem impedimento ainda. Era como se a passagem fosse direta da infância para a juventude adulta. Com dois marcos irrefutáveis: o baile dos 15 anos para as chamadas meninas-moças e o serviço militar para os rapagões.  Pórticos para a vida adulta com suas disponibilidades e responsabilidades. Esse duo de –ades não se exercia com igual intensidade nos dois sexos exclusivos (hoje, na multiplicidade de gêneros, palavra consiferada mais adequada e politicamente correta). Rapazes criavam asas e esporas facilmente. As moças ficavam sob as rédeas familiares. Avós, tios e irmãos decretavam costumes em igualdade com os atarefados pais, às voltas com todos os demais filhos e com a subsistência diária.

Nada impedia as brincadeiras de sempre: bola de gude, futebol, figurinhas, bonecas, pingue-pongue, pular corda, subir em árvores de quintais espaçosos e usar rodas de todos os diâmetros. Sem distinção de sexo. Uma infância de brincar com tudo e sem limites de território: em sua contiguidade o espaço mais socializado e socialista das crianças e dos adolescentes.

Um tempo em que a rua só era perigosa em momentos regulados pelo trabalho: a hora de ir para a fábrica ou a lavoura e a hora de voltar para casa, jantar e dormir. Sem televisão nem baladas ou raves: apenas as ondas do rádio e as conversas na cozinha, centro da sociabilidade familiar.

Quermesses da igreja, leilões, rifas, pescarias de bugigangas e músicas dedicadas aos namoricos e amigos, nessa ordem de preferência. Quando sobravam moedas, as matinês de domingo, animadas por filmes lançados há anos nos cinemas da capital.

No mais, a monotonia feliz dos dias regulados, das férias em casa, das viagens raras, dos amigos que só se disputavam por figurinhas e intrigas tolas.

O antigamente se espraia em ações e expectativas do hoje. De tal maneira amalgamou-se na vida interior e na memória, que dá sempre a impressão de ter sido apenas um documento histórico para dizer, entre rugas e cãs, “meninos, eu vi!”. Ou, em dias de mau humor e indignação com o presente, poder dizer-se em silêncio ou como uma acusação ao mundo mudado: “Era um tempo melhor: aquilo é que era vida!”

No entanto, no silêncio da solidão, em conversa com o espelho interior, sei que, verdade da verdade, o melhor mesmo era a idade: os olhos impregnados de jovens aprendizados e a alma aberta a acreditar no que viria.

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