Marta Morais da Costa
O pecado foi o monstro temível e aterrador de minha infância. A cabeça hipertrofiada, o riso bestial, olhos em fogo, dentes lupinos, garras e cascos. Algo como um diabo medieval somado à besta do lago Ness. Nem por isso eu deixava de levar semanalmente ao confessionário uma lista decuplicada de transgressões às leis divinas. É verdade que, perto do que a idade madura traria, o rol era apenas fruto da imaginação e eco dos sermões dominicais. Nascemos todos anjos, alguns perdem as asas e humanizam-se rapidamente. Em slow motion, demorei a perdê-las. E até hoje tento humanizar-me. Dura tarefa, talvez impossível. Se o que vejo ao redor e cotidianamente é o modelo de humanidade, fico mais certa de que não quero assumir em mim o que meus olhos descobrem.
Esta crônica não tem a intenção de atuar como confessionário, portanto, fiquem tranquilos, leitores, prometo não enveredar por questões religiosas, embora elas enveredem teimosamente no meio de minhas palavras e dos dedos a dançar pelo teclado. Vade retro, temptatione!
Herdei do repertório brasileiro de canções, tão rico, diverso e inovador (com o perdão dos países que reclamam esses adjetivos, mas não passam de arremedos de nossa criatividade musical) uma composição que, se puder, canto no volume mais alto que as pregas vocais aguentarem: “Da cor do pecado”, de Bororó. Para além do caldo sensual, das imagens voluptuosas, me intriga essa minúscula construção verbal desafiadora do título. Qual é a cor? Por que é pecado?
Vai daí que recebo um meme instigante sobre “Os 7 pecados literários” de @nosso_universo_literario. Conhecem? Tomo a liberdade de reproduzir para os poucos que ainda não o viram:
1 Gula- Devorar um livro em poucos dias.
2 Avareza- Não emprestar livros.
3 Luxúria – Desejar um livro sem ter lido os que já tem.
4 Ira – Querer matar um personagem.
5 Inveja – Cobiçar o livro do próximo.
6 Preguiça – Enrolar para terminar um livro.
7 Orgulho – Achar que o gênero que você lê é o melhor.
Depois de um exame de consciência na velocidade da luz, fiquei achando que até melhorei ao longo dos anos. Sabem aquela lista de 10 pecados no confessionário da infância? Pois é, agora são somente sete!
Incorro em todos esses, sem culpa, gostosamente.
Também não é para fazer uma profissão de fé pecaminosa em relação à leitura que iniciei esta crônica-confissão. O que me perturba é a tal “cor do pecado”. Será que tem a ver com a cor das vogais do poema de Rimbaud?
Só pra recordar: o jovem poeta e futuro mercador de armas Arthur Rimbaud escreveu um soneto intitulado “Voyelles” e nele atribuiu às cinco vogais francesas (com timbres diferentes dos da língua portuguesa, embora escritas tal e qual) as seguintes cores: negra (a), branca (e), vermelha (i), azul (o) e verde (u).
É evidente que eu e mais alguns milhões de pessoas dariam cores diferentes para as mesmas vogais, sem correr o risco de levar uma arminha pela cara. Cada um sabe “a dor e a delícia de ser o que é”. E o que não somos é, seguramente, submissos a declarações subjetivas de alfabetos coloridos, mesmo com o arrojo poético rimbaudiano.
Longe de mim ser comparada ao mestre armeiro, mas minha atração pelo abismo me leva a tentar resolver a minha maior incógnita do momento: qual é a cor do pecado?

Junto alhos e bugalhos e parto de imediato para a tentativa de uma resposta exequível (viva a reforma ortográfica recente: pronuncio o u, mas não o marco mais com trema!) sem tremer.
Os tais sete pecados capitais formam um conjunto de número mítico que, como boa virginiana, apresentarei em ordem alfabética. No meu entendimento, hoje composto por neurônios decrescentes e joelhos esfolados de tanto rezar, eles seriam cromaticamente associados, pintados e bordados desta maneira:
– Avareza, dourada como os potes de ouro do rei Midas e a caverna de Ali Babá. Afinal, entesourar hoje é para nababos e contos maravilhosos.
– Gula: a este tenho o maior apreço, e para confirmar minha adesão entusiasta, coloco neste pecadinho a enormidade possível das cores, um cardápio multicolorido como a natureza que nos alimenta o corpo e o espírito.
– Inveja, santa ou pecaminosa, é amarela! Está na palidez do invejoso e nas órbitas esbugalhadas de quem trocaria tudo o que tem pelo ouro de tolo dos outros.
– Ira é branca no esgar dos dentes de crocodilo de um rosto desequilibrado, na baba a espumar nos lábios, no apagão dos neurônios.
– Luxúria – eita “pecado rasgado, suado, do lado de baixo do Equador”! Tua cor está nos cenários da rede Globo, no mesmo vermelho de roupas e espaços de teatros e cinemas, na sensualidade rubra das divas e dos divos, no desejo ardente a levar as almas para os divãs de psicanalistas.
– Orgulho é um pecado de sangue azul. Da cor do céu que julgam habitar os nobres de calção de esfola-gato dos tempos de Gregório de Matos até os privilegiados da vida que circulam nas vias privilegiadas da sociedade de sangue vermelho, igualzinho para todos.
– Preguiça, vício macunaímico, indolente pendão das décadas perdidas e do retrocesso, bandeira falsa atribuída aos artistas, que mais criam quanto mais trabalham, mesmo estando em redes ou leitos insones. Você, preguiça, é bege, flicts, a cor rejeitada da boca para fora e tatuada a ferro e fogo, que a alma lava, esfrega, mas não apaga.
Como pecadora não arrependida, entendo que esta crônica se estende por demais com apenas sete pecados. Os outros estarão escritos em livros inúmeros localizados nos cantos mais escuros da biblioteca infindável de Borges.
Ó Pai, perdoe-me, porque eu pequei. Fiquei amarela de inveja ao ler a crônica desta mulher, logo agora, que estou seca de criatividade, estorricada, melhor dizendo. Vou me redimir do pecado admitindo, ela é boa, nasceu com as palavras na ponta da língua. Estou salva?
CurtirCurtir
Cléo, lembra que falei de masoquismo? será que é contagioso? acho que vou abandonar essa palavra para não causar confissões pecaminosas de amigas hehehe Falando em seca, você já pensou em tratá-la como um fenômeno de simbiose Cléo-natureza? Virão por aí as águas de outubro… Salvou-se, sim! Abraço.
CurtirCurtir