Caderno

Olho vigilante, o velho caderno
aponta o passado e acusa.
O que restou em notas dispersas
prova o vivido e já apagado.
Nuvens de letras, cenários pintados,
onde o tempo encenou por anos
os enredos do saber.
Pendurados nas linhas,
datas e fatos,
olhos maus a espiar
o presente viajante,
a acessar a memória
de perdas nem sabidas
pedaços do tempo esquecido,
linhas de um passado
rabiscadas em hiatos de vida
hoje nada.

Bonde

Marta Morais da Costa



trilhos são cicatrizes

no corpo da cidade

passos pesados de ontens

seguem as linhas mortas

a memória é trajeto

remexido e vivaz

acordando vozes e risos

na viagem que já não há

na rua estreita os trilhos

rebrilham interrompidos

no tempo esfumado

da perdida meninice

criança saltita

entre pedras e trilhos

borboleta fugaz

beijando a flor

que já não há

no casulo de aço e vidro

o  urbanista projeta sereno

o novo traçado da rua

sem ontem

sem trilhos

Féretro



a via férrea
a vila férrea
a veia férrea
a vida férrea

o apito do trem
o aperto do trem
o preto do trem
o peito de outrem

o chiar do trem
o chefe do trem
a chave do trem
o choque do trem

ferrugem sanguínea
fuligem curvilínea
falida frenagem
ferida viagem


na via férrea,
o preto da roda
corta e ceifa
vidas sem dó.

Marta Morais da Costa

Diálogos I

Foto por Cup of Couple em Pexels.com

Entrevista de Paulo Freire a Elias Fajardo em 1985.


EF- Fale um pouco de sua infância, do Recife em que nasceu.

PF – Há algum tempo, com profunda emoção, visitei a casa onde nasci. Pisei o chão em que me pus de pé, andei, corri, falei e aprendi a ler. O mesmo mundo que foi o meu primeiro mundo que se deu à minha compreensão pela leitura que dele fui fazendo. Lá, reencontrei algumas árvores da minha infância. Reconheci-as sem dificuldade. Quase abracei os grossos troncos, que eram os mesmos jovens troncos da minha infância. , Então uma saudade que costumo chamar de mansa ou de bem comportada, saindo do chão, das árvores, da casa, me envolveu cuidadosamente.

Na casa mediana em que nasci, no Recife, à sombra das árvores eu brincava e, em seus galhos mais dóceis à minha altura, eu me experimentava em riscos menores que me preparavam para riscos e aventuras maiores. A velha casa, seus quartos, seu corredor, seu sótão, seu terraço, o sítio de avencas de minha mãe, o quintal amplo, tudo isso foi meu primeiro mundo. Nele engatinhei, balbuciei, me pus de pé, andei, falei.

Os textos, as palavras, as letras daquele contexto se encarnavam no canto dos pássaros – o do sanhaçu, o do olha-pro-caminho-quem-vem, o do bem-te-vi, o do sabiá; na dança das copas das árvores sopradas por fortes ventanias que anunciavam tempestades, trovões, relâmpagos; nas águas da chuva brincando de geografia: inventando lagos, ilhas, rios, riachos. Os textos, as palavras e as letras daquele contexto se encarnavam também no assobio do vento, nas nuvens do céu, nas suas cores, nos seus movimentos, na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores – das rosas e jasmins -, no corpo das árvores, na casca dos frutos, na tonalidade diferente de cores de um mesmo fruto em momentos distintos: o verde da manga-espada verde, o verde da manga-espada inchada, o amarelo esverdeado da mesma manga amadurecendo, as pintas negras da manga mais além de madura, na relação entre estas cores, no desenvolvimento e no seu gosto. Foi nesse tempo, possivelmente, que eu, fazendo e vendo fazer, aprendi a significação da ação de amolengar.

Daquele contexto – o do meu mundo imediato – fazia arte, por outro lado, o universo da linguagem dos mais velhos, expressando as suas crenças, os seus gostos, os seus receios, os seus valores. Tudo isso ligado a contextos mais amplos que o do meu mundo imediato e de cuja existência eu não podia sequer suspeitar.

Até os meus sete anos, talvez, o bairro do Recife onde nasci era iluminado por lampiões que se perfilavam, com certa dignidade, pelas ruas. Eram lampiões elegantes que, aos cair da tarde, se “davam” à vara mágica de seus acendedores. Eu costumava acompanhar do portão de minha casa, de longe, a figura magra do acendedor de lampiões de minha rua, que vinha vindo, andar ritmado, vara iluminadora no ombro, de lampião a lampião, dando luz à rua. Uma luz precária, mais precária do que a que tínhamos dentro de casa. Uma luz muito mais tomada pelas sombras do que iluminadora delas. (p.18-19)

Me lembro das notes em que, envolvido no meu próprio medo, esperava que o tempo passasse, que a noite se fosse, que a madrugada semiclareada viesse chegando, trazendo com ela o canto dos passarinhos “amanhecedores”.

EF- O senhor é tão poético. Que ligação tem com a poesia?

PF- Adoro a poesia, gostaria de ser poeta, enquanto capaz de fazer o tratamento poético das palavras. Mas eu me acho poeta enquanto sou capaz apenas de sentir o pingo da neve, a flor abrindo; mas não sou possivelmente poeta enquanto capaz de dar forma ao sentido e ao sentimento do mundo.

EF- Eu discordo um pouco, porque uma pessoa que diz coisas como “no conhecer não se pode desprezar o adivinhar” é também um poeta.

PF – Inclusive, a poesia adivinha, não é?

FAJARDO, Elias. Paulo Freire: “Conhecer não é adivinhar, mas tem a ver com adivinhação.”

Revista do Brasil, RJ, ano2, nº 4, 1985, p.12-19.

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INFÂNCIA

          Carlos Drummond de Andrade

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
Lia a história de Robinson Crusóe,
Comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
A ninar nos longes da senzala -- e nunca se esqueceu
Chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
Café gostoso
Café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo
Olhando pra mim:
-- Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava
No mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
Era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

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MUNDO PEQUENO I

                            Manoel de Barros

O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco,
os besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa.
Ele me rã.
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os ocasos.

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MESTRES

              Marta Morais da Costa

Minhas árvores da infância em outros verdes
mais enverdecem nos versos dos mestres.

Minhas águas da infância, em ouro e peixes,
mais clareiam nos versos dos mestres.

Meus pássaros da infância em cores e voos
nos versos dos mestres melhor entoam.

A sequestrada casa da minha infância
libera-se nas imagens dessa poesia.



			
					

Vem me contar…


Vem me contar,
gestos, sorriso e voz
as histórias de belos finais
de príncipes e camponesas
de campônios e suas princesas
enlaçados e felizes para sempre.

Vem me contar
entre o gemido e o espanto
no ricto do horror e da revolta
as histórias sangrentas de guerras urbanas
de desvalidos e até graduados
de presos e liberais, justos e marginais,
tombados nas ruas e lixeiras
de um país trucidado e trucidante.

Vem me contar
antes que o tempo acabe
e a alma em desalento apague
as histórias secretas repugnantes
de conluios, trapaças e saques,
(de quem sem arma mata,
com sorrisos de traição,
com verborreia falsificadora)
inoculados nas veias safenas
de um país de impunes gloriosos
e de operários sem construção.


Marta Morais da Costa

Theatrum vitae

Foto por Alexey Komissarov em Pexels.com
O lugar de onde olhas
as loucuras dilacerantes
nada tem de idílico;
antes ressoa o vendaval
desgovernado,
antes concreta em ais
as paixões devorantes.

Escorres em música
as vozes coléricas;
coleias em danças
o erotismo ardente,
palavras ausentes,
corpos em chamas.

Trazes ao contemplantes
a sarça em vão ardente
da liberdade agonizante.
Uivas aos abismos, ó teatro,
as dores indomáveis.

No jorro contínuo
das palavras sem eco,
revestes os rostos
com o inferno de dentro.

Nem louros, nem aplausos
recobrem teu solo trágico:
nele desaba o imperioso castigo.

A culpa corrói o protagonista
e desavém palco e público.

Inversos

Da abundância fluem carências;

os fios das teias se enovelam;

a gota espessa, que balança

na ponta da folha, deságua.

No cume da montanha

vige o desejo dos vales;

das correntes turbulentas,

o sonho do remanso voa.

Nas areias do deserto,

o verde viril pontifica;

de cada boca sedenta,

a fome mais irradia.

Em cada beijo volátil,

o sexo mais se atrofia;

assim a vida se vira,

em carências, opostos,

nervuras.

Sob dossel fantasmal,

a matéria em desatino

faz brotar dos lençóis

sangue, suor e gemidos.

Há no tempo que passa

pelas janelas do corpo

um corroer magistral,

embebido de alegrias,

latentes e desdobráveis,

a mostrar, entredentes,

a beleza inconstante,

que dentre as cinzas

renasce

Marta Morais da Costa

Crença

Marta Morais da Costa

Atrás de qualquer porta

a lua pode te seduzir.

No muro que te cerceia

a curruíra faz seu ninho.

Na paisagem deserta

a flor oculta as pedras.

Na árvore seca

a cigarra vem cantar.

Por trás da pálpebra

o olho busca a luz.

Assim o tempo que te corrói:

preserva em um átimo

nítidas lembranças

e a frágil esperança

da sobrevivência,

fortuita,

aleatória.

Livro

Foto por rikka ameboshi em Pexels.com

 

 

 

Todo livro principia

no ponto de encontro

da ponta com o papel.

 

Lápis ou caneta,

pouco importa.

 

Qual broca na rocha

a ponta cria o ponto

de onde jorram águas

                ainda impuras,

represadas,

embebidas

de matéria orgânica

que fertiliza a escrita

na enchente das páginas.

 

Agricultor zeloso,

o escritor se entrega

ao solo copioso

a separar o joio

– que indiciará a realidade –

enquanto faz do trigo

o pão das utopias.

 

Marta Morais da Costa