Vou, voto e volto

Foto por Pixabay em Pexels.com

São sete horas da manhã. O dia está nublado. Um vento anuncia chuva e essa perspectiva me faz sentir ainda mais frio. Hoje não estou para ninguém: não quero telefone, nem whatsapp, nem televisão. O rádio vai ficar mudo. A cabeça tem apenas dois compartimentos: a vontade e a memória. Hoje é dia de votar.

Depois de ler, ouvir, assistir e refletir, montei um cardápio de números. Vou derramá-los conscienciosamente na urna, toque por toque, na sequência proposta pela máquina. Levo todos na memória que não há de falhar. Sempre fui um ás na matemática. Pena que tive de abandonar os estudos. Mas foi para ajudar em casa, tão grande era a necessidade.

Passei uma noite em claro quando me despedi da escola. Um pouco de ansiedade para começar a ganhar meu sustento e muito de tristeza porque sem escola o futuro fica mais incerto. Mas nem sempre há caminhos a escolher: às vezes a rota está previamente traçada.

Um café forte, um pãozinho dormido e a maçã para o caminho de volta. Corro para não perder o ônibus que na semana me leva para a fábrica e hoje para a escola. As ruas ainda estão sonolentas, poucas pessoas sem pressa, ônibus em meia carga, que aos poucos aumenta. Desço perto de meu destino e sou recebido por uma garoa que faz brilhar minha jaqueta. Bom augúrio para meus objetivos. Com passos apressados entro no prédio que abandonei há pouco tempo.

Meus olhos percorrem avisos que ilustram as paredes em busca da confirmação do local de votação. Em minha frente, duas cabeças já branquejadas, com dificuldade procuram sua seção. Se vocês quiserem, posso ajudar. Eles, surpresos, agradecem. Qual é o número da seção? Eles se atrapalham com o título de eleitor que está em suas mãos. Viram e reviram o papel, descobrem e dizem. Localizei: estão próximos das salas. E se encaminham, lado a lado, para cumprir um papel para o qual estão até dispensados. Meus pais darão futuramente este mesmo exemplo? A imagem deles toma o palco da memória e, por uma centelha de instante, a escola virou sua casa e a dúvida se inseriu nos olhos de seus pais.

Conferi o local da seção e tomei o rumo das escadas. Impedidas por um homem e dois cachorros, que, vestidos nas cores do partido, pareciam qualificar e exibir as preferências políticas do seu dono, que nem se importava em interromper o trânsito. Cidadania não é apenas poder votar, pensei. Exigi a passagem e subi.

Filas enormes, queixas, irritação. Mas ninguém arredou o pé. Afinal, os meios de comunicação derreteram os cérebros espectadores com mensagens de vote vote vote cidadania cidadania dia importante a festa da democracia e outros imperativos.

Em algumas seções, filas, problemas, esperas. Em outras, a fluidez da tecnologia e da destreza. O rádio e a tevê anunciam prisões, fraudes e urnas ineficientes. Parece que viver mais obstáculos melhora a eleição, dá visibilidade ao caos e divulga o mau caráter de poucos.

Mas votar é imperativo.

Respeitar o resultado serão outros quinhentos. Queixas, surpresas, temores e torcidas de futebol, é tudo. Esperança de um Brasil melhor? Sim, sempre. O difícil é o como. Nesta palavrinha – como – desliza o tempo em direção à cova. Cava-se na história um preâmbulo que jamais chega a um primeiro capítulo razoável. Como as promessas de boca cheia de acabar com o analfabetismo no Brasil.  Décadas se foram e milhões de brasileiros continuam sem ler ou leem mal. Funcional apenas, o alfabetismo vence sempre as eleições.

Entro na cabine, reconheço a urna, digito obedientemente os números da memória e, ainda aflito, teclo FIM.

______

Em tempo: este texto foi escrito em 2 de outubro de 2022, quando o Brasil continuou sua trajetória para trás.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s