Daí, bró? Beleza, Machadão?

                                                                                              Marta Morais da Costa

Machado de Assis, por Stegun

Um terço do corpo tatuado, os lóbulos esbanjando enormes botões pretos assemelhados a bodoques, fones devidamente posicionados nos ouvidos para curtir um heavy metal altissonante, skate nas mãos e boné de pala reta – colocado ao contrário, é claro – e  a última gíria na boca: tudo isso me permitiria, anciã provecta, divar na tchurma do meu neto?

Segundo alguns equivocados (vá lá, talvez bem intencionados) lidadores culturais, atitude e ação semelhantes podem ser adotadas com textos machadianos com o objetivo meritório de conquistar leitores.

Depois da morte do autor, constatada e epitafiada por Foucault e Barthes, estaríamos vivendo os lúgubres tempos da morte da autoria e da autoridade escrevente. Nada de a linguagem expressar um tempo e uma cosmovisão históricos. O importante agora é travesti-la em garota-propaganda para seduzir o mercado de leitores. Diriam os anjos do Mal: bem feito para quem colocou o leitor como juiz absoluto! Tal como nas famílias condescendentes, o adolescente bate o pé e as chaves do carro deslizam para suas mãos. Então, adolescente e leitor viram rei.

Queremos conquistar leitores? Sim. Temos recursos para isto? Sim. Até mesmo trocar autoria e estilo dos maiores escritores da língua portuguesa para adequar obras à compreensão tida como rastaquera e rasteira dos adolescentes e dos jovens? Sim e não! Sim, para a finalidade de prolongar, aprofundar e manter a imbecilidade cultural reinante. Não, se entendermos que a leitura é também desafio e conquista, e não é acomodação.

A formação de leitores para a literatura pela escola tem produzido resultados esquizofrênicos. Alguns poucos alunos se dizem leitores por causa de seus professores. A maioria foge entediada da leitura obrigatória, dos livros considerados clássicos ou de qualquer texto que exija um razoável espaço de tempo e concentração, uma reflexão de profundidade mínima, um trabalho de compreensão mais apurado. Essa realidade é flagrada nos índices nacionais e internacionais a respeito da leitura de qualidade, é flagrada na absurda ausência de usuários de bibliotecas e frequentadores de livrarias.  Talvez seja arcaísmo pensar bibliotecas e livrarias físicas. Pensemos, então, em celulares, tablets e e-readers. Basta averiguar o que fazem os aficionados de produtos de alta tecnologia que, alheios ao entorno, se dedicam a teclar e alisar telas o tempo todo. Quantos deles estão lendo algum livro digital?

Para consertar esse mundo quase sem literatura, pensam alguns que basta aplicar aos textos a mesma idiotia pedagógica da facilitação, uma metodologia de facilitação.  Pois é preciso ler os clássicos – porque sempre são eles os bodes expiatórios de programas e professores que, para formar leitores, servem-se da papa fina da literatura, usando-a como angu. Então, para que a pretensa e, segundo eles, a intransponível dificuldade de leitura seja amenizada, não se furtam a resumir, adaptar, extrair palavras, sinonimizar pobremente os textos literários de qualidade. Há tempos a escola vem operando essa mutilação. Agora, a intenção, a metodologia e os recursos ganham notoriedade na imprensa com o aval do governo federal.

Relato uma experiência do início dos anos 90 do século passado.  Em União da Vitória, cidade do interior do Paraná, uma professora, orientada por Sandra Konell, na época mestranda da Universidade Federal do Paraná, trabalhou com alunos de NOVE anos textos de Kafka (“A ponte”) e de Guimarães Rosa (“A menina de lá”) entre outros da literatura infantil e adulta. O resultado foi do choque e catatonia iniciais ao deslumbramento e aprendizagem finais. Onde esteve a varinha de condão desse sucesso? No trabalho professoral de mediação qualificada, na crença de que os alunos mesmo muito jovens não são estúpidos e incapazes, e, não menos importante, na certeza de que a literatura de qualidade (mesmo que não seja Machado de Assis, vítima contumaz de citações sem leitura) pode abrir horizontes de compreensão do mundo.

Uma perguntinha me atormenta: o cáustico, desvendador e elegante humor machadiano precisará ser transformado em deboche, em stand-up comedy, em cômico de séries televisivas para ser melhor compreendido?