Pânico

Marta Morais da Costa

Era sua vez de providenciar os alimentos para a família. Confinados há semanas, sabia que pai, mãe e irmã dependiam de sua ida ao supermercado. O revezamento com Cláudia lhe permitia reencontrar espaço e objetos familiares. Mas ia com o coração apertado.

Vai que por falta de cuidado levasse pra casa, com as compras, o tal vírus. Até que era bonitinho, ele, o danado: as antenas como um satélite viajando pelo espaço do sangue e dos órgãos, como vira na animação da tevê. Aliás, a tal epidemia criara nele uma vontade imensa de ser médico. Esses caras bacanas que falam umas palavras esquisitas, que se vestem de anjo (ou de fantasma), que usam uns aparelhos de robótica. Bem melhor que os heróis de quadrinhos. Só que menos poderosos, senão nos primeiros sopapos acabariam com a raça dos coronas.

Mas as recomendações de Cláudia e dos pais botaram um medinho em sua cabeça. Saiu protegido com máscara, luva e atenção redobrada. Sentia que estava ficando adulto: a responsabilidade era uma espécie de carta de maioridade. Aliás, depois que a epidemia passasse, poderia reivindicar algumas mudanças: poder chegar mais tarde em casa, passar as férias na casa dos amigos, aproveitar os feriados para ir com o Raul e os pais dele para a praia, ganhar um novo celular, um dinheirinho extra para um sorvete com a Aninha e algumas coisinhas mais. Ainda iria pensar bem na lista de reivindicações. Com direito a conversa adulta com o pai e a mãe.

O supermercado até que estava meio vazio quando chegou. As pessoas olhavam desconfiadas, desviavam de corredor quando o viam chegar. Acho que por ser adolescente, ele representava o inimigo cruel para aquelas pessoas grisalhas. Nunca havia se sentido assim tão atemorizador. O medo transforma comportamentos, não?

Lá nas prateleiras de frutas e legumes começou a perceber mudanças. Olhava para as batatas e elas pareciam uma montanha de vírus coroadinhos e empilhados. As alfaces tinham em suas folhas a imagem exata de dentes prontos para morder suas mãos. As bananas traziam desenhados os coronas em suas manchas escuras. Até os ovos pareciam vírus arrumados em suas casinhas e esperando transporte para a casa dos reclusos.

Na padaria não foi diferente. A balconista de máscara lembrava a enfermeira perguntando: E hoje, o que vai querer? Soro ou injeção? Pão de leite ou integral? Estenda o braço pra pegar o pacote (uma injeção na veia?). Mais alguma coisa? Pão de queijo ou antibiótico? Quantos francesinhos? Ou comprimidos?

Estava confundindo tudo: mexeu a cabeça de um lado para o outro, de cima para baixo, como se quisesse reorganizar os miolos. Um funcionário, que arrumava as mercadorias nas prateleiras, olhou para ele de forma estranha e rapidamente saiu daquele corredor.

O carrinho ia ficando cheio de mercadorias: azeite, vidros de conservas, café, a manteiga para o pai, o peixe para Cláudia, o chá para a mãe. Aos poucos, cada item da lista passava da prateleira para o carrinho. Nenhum deles, no entanto, era acomodado com facilidade: a mão estava insegura, a luva branca parecia um pequeno fantasma de braços e pernas abertos a querer tomar conta de seu coração aos pulos. Nas embalagens coloridas, ele via desenhos camuflados de vírus sorridentes, meio cínicos.

Agia com a pressa de quem estava sendo perseguido: era diferente de quando imaginava aventuras em selvas, na cidade abandonada, em perseguições no ar ou no mar. Agora era como se os inimigos, além de invisíveis, fossem infinitos e de uma maldade poderosa, sarcástica, tirânica.

Lembrou do pai dizendo que ler muito deixa alguém meio doido, com imaginação sem limites nem controle. Lembrou da mãe aconselhando a ter cuidado e não falar com pessoas estranhas e não tocar em lugares perigosos, além de respirar pouco e não tocar na máscara. Tão bom o tempo em que ela apenas aconselhava a levar um suéter porque podia esfriar! 

– Acho que ando vendo e ouvindo muita coisa sobre esse vírus que ele, mesmo sem ter entrado no meu corpo, contaminou meu cérebro – pensou. Vou precisar desinfetar a cabeça, insistiu em pensar. 

Pareceu-lhe que o caixa do supermercado se comportou como um vilão Coringa, seriamente demorando o dobro de tempo para terminar o registro da compras, cobrar o total e liberá-lo para o ar livre.

Quase em pânico, saiu porta afora. Respirou longamente, fechou e abriu os olhos muitas vezes, agarrado às sacolas como se fossem boias no meio do mar do medo.

Aos poucos, sentiu-se ele novamente. Melhor ainda, sentiu-se mais forte. Sentiu-se mais leve. Cumprira a tarefa. Era um menino responsável: também dele dependiam a Cláudia, o pai, a mãe.

Jurou que não trocaria mais seus livros e quadrinhos pelo noticiário da tevê.

E tomou o caminho de casa.

19 abril 2020

Quarentena 1

Marta Morais da Costa

Hoje cantei velhas canções.

Entoei palavras em desuso

verbos no pretérito

adjetivos de pura utopia:

galhardo, sinuoso, merencória.

Pastorinhas, perfídia, amor pra chuchu.

Visitei em notas e acordes

sentimentos plácidos,

a paixão perenal,

o ósculo sonhado,

a valsa dolente entre seus braços,

a queda que ensina a levantar,

beijinhos e peixinhos infinitos,

a vida que valia a pena.

A proximidade dos astros,

em que pisávamos distraídos,

em um carrossel de emoções,

resolvidas no riso aberto

e aos pés do altar.

A música melodiosa

ainda soa aos ouvidos

enquanto no ar, lá fora,

reina o silêncio do medo

e a ameaça do fim.

10/abril/2020