Marta Morais da Costa
1
-Alô, mãe?
– Alô? Alô? Quem fala?
– Sou eu, mãe, a Adriana. Não tá reconhecendo a voz?
– Oi, filha. Sabe, né, que tô meio surda…Você está bem?
– Me virando, mãe, com essa loucura da epidemia…
– Me conte uma novidade.
– Eu?? Tô fechada em casa, como a senhora. Novidade nenhuma. O de sempre.
O diálogo pode ser monótono. A novidade inexistente. As relações longínquas. A rotina entediante. Tudo o que conspira contra a vida social, mesmo a mais recatada do novo ano a.C.
Olha que Adriana caprichou nas mensagens de Ano Novo. Votos de paz, saúde, prosperidade. Tudo em cinzas. Parece que foi no século passado. Talvez tenha sido mesmo. Sente como se relatasse sua vida de menina para o filho mais novo. “Naquele tempo a gente saía para um jantar no restaurante, via uns filmezinhos no cinema, namorava, comprava sorvete, dava uma passadinha no shopping, ia pro chá com as amigas. Coisinhas básicas. Até abraço, aperto de mão, confiança no outro. Isso tudo que a gente não pode fazer hoje, filho.”
Nem tudo posso falar para ele. O tédio, a saudade, o medo. Da casa hoje conheço cada canto, cada azulejo, cada coisa no e fora de lugar. Precisa consertar a pia do banheiro, a torneira do jardim, o piso da garagem. Acho que a calha está entupida…Mas cadê a coragem para trazer os trabalhadores e aceitar sua circulação pelo ambiente da casa?
Nem falo do cabelo espevitado do Rui, da visita rotineira ao cárdio, da roupa na lavanderia esperando ser retirada, no aniversário da Ninoca que se aproxima, no presente do Raul prometido e atrasado.
A vida ficou reduzida, os compromissos caducaram, a viagem anual foi adiada, as aulas suspensas. Tudo o que já não poderá ser.
Liga a TV e tudo parece o mesmo de ontem. Liga o computador e não aguenta mais lives e lives e facebook e instagram: tudo do mesmo. Se whats gastasse, restaria a tela vazia. Por que ninguém mais escreve? A lista de contatos encolheu e silenciou. Nem a alegria de receber o marido na volta do trabalho existe mais. Aliás, nem o trabalho.
O vazio, o medo, a perspectiva de futuro encolhendo.
Soube que o vizinho da esquina foi para a UTI. A família dele recolhida, cortinas fechadas. Silêncio.
É, podia ser pior aqui. “Se queixando de barriga cheia”, diria a mãe. Hoje, como transanteontem, como há noventa dias.
Por causa do corona até deixou de lado a obsessão por famílias reais, suas coroas de cabeça em cabeça. Seu encanto aristocrático, cadáveres futuros iguaizinhos aos milhares de enterrados em covas rasas e sem velório.
Soube que andam derrubando estátuas: teme que seus valiosos reis e rainhas coroados despenquem em praça pública, arrojados ao chão pela horda de inimigos. Seria mais um fator dramático a ser contabilizado em suas perdas e danos.
– Novidades, mãe? Ah, a chuva desta noite foi ótima: abriu mais um botão de rosa no jardim!
– Como? Vai viajar de novo para Berlim?
– Não, não. Nasceu uma rosa no jardim!
– E isso é novidade? Rosas nascem todos os anos… Conte uma novidade pra valer.
Mal sabe ela que uma novidade para valer tem muitos algarismos de tragédias e descasos. Melhor voltar aos cantinhos empoeirados da casa. E limpá-los como se fosse o cérebro e o coração dominados pelo medo.
2
O velho despertador soa frenético e se sacode no horário de sempre: mais um dia de trabalho. Em poucos minutos, de roupa limpa, cara amassada, xícara de café na mão, pão com manteiga, sério, magro, ansioso. Deposita a xícara na pia, no mesmo movimento pega a marmita e coloca na mochila. Um beijo distraído no rosto de mulher, um tchau quase inaudível, a porta que se fecha depois de deixar entrar o ar ainda frio e úmido da madrugada.
Na rua outros vultos silenciosos: um bando de mascarados apressados em direção ao ponto de ônibus. Que chega quase lotado. Alguns sentam, outros agarram firmemente as barras de apoio, aos poucos o ar se aquece, as máscaras sufocam, o rodar dos pneus embalança os corpos até o próximo solavanco. Ninguém fala, as cabeças vão projetando filmes particulares: imagens de casa, de conversas, planos de trabalho, advertências de saúde, expectativas. A costurar as imagens aquela frase inútil do ”fique em casa”, tão inútil quanto os inúteis que ficam em casa e não trabalham, ou dizem que trabalham num tal de romófice.
Se ficasse em casa, poderia estar mais seguro, mas a quem poderia recorrer se perdesse o emprego no açougue? Já foi tão difícil seu Amadeu me contratar. Se eu disser que vou ficar em casa, posso assinar a demissão, pensava Delvair. O filme na cabeça reprisava as imagens de queixas da mulher, de pedidos chorosos do filho, de bolsos vazios, de caminhadas sem fim em busca de emprego, de idas inúteis à agência do trabalhador, de noites em claro. “Fique em casa!”: isto é coisa pra riquinho ou pra aposentado.
O terminal ferve de gente. Lá na frente uma fila pra passar álcool em gel. Já que tem que andar pelas ruas, um pouco de cuidado tem que ter: a tevê insiste nisso. Ainda vai andar uns quarteirões até chegar ao trabalho. É gente andando pra todos os lados, todos muito próximos, alguns sem máscara. É confiar em Jesus e seguir em frente.
Seu Amadeu no caixa parece ficar menos ansioso quando Delvair entra. Imediatamente o rapaz veste avental e gorro e vai pro fundo do açougue começar a fatiar a carne e separar o que vai para o balcão e o que fica na geladeira.
Hoje a carne veio bonita, parece macia. Corta, limpa, separa. Algumas peças vão temperadas pro churrasco da moçada. E o dia corre em trabalho, mal tem tempo de almoçar, de beber uma água, de lavar as mãos. Ainda bem que os fregueses voltaram: se continuasse aquela venda mixuruca talvez perdesse o emprego. Agora não.
Seu Amadeu liga a tevê e lá pelo meio do noticiário, um jornalista com cara de tragédia anuncia que o número de infectados subiu, que é preciso aumentar os cuidados, que talvez fosse melhor fechar o comércio. Tá louco, o privilegiado! Lá no estudiozinho com ar condicionado, terno elegante, voz macia, sorriso colgate, lá tudo pode. Mas a vida real é esta aqui: se não sair, não trabalha. Se não trabalhar, não põe comida na mesa, nem filho na escola. Vivem todos no mundo da lua, como dizia meu pai.
Hora de ir para casa. Mesmo caminho, mesmo terminal, mesmo ônibus lotado, mesmos perigos. Em casa um afago no filho, um beijo rápido na mulher, um jantar de luxo (seu Amadeu lhe deu uns retalhos de carne), um pouco de futebol na tevê e cama.
Logo o despertador vai tocar. Ele vai levantar e fazer tudo igual. Talvez lá pela frente tenha um encontro marcado com o tal coronavírus. Isso será uma quebra da rotina, uma novidade. Ou talvez a última novidade.