1374

Marta Morais da Costa

Aqui começa um texto que eu não gostaria de escrever. Serão palavras que deveriam vir com a advertência da Divina Comédia, de Dante: Lasciate! Deixai aqui neste pórtico toda a esperança. Mesmo aquela fabricada e acumulada artificialmente por décadas de persistente exercício de
“amanhã irá melhorar”, “vamos tentar mais uma vez”, “agora vai!”.

Não fui, não deu.

São menos 1374 brasileiros vivos sobre este território verde e amarelo. Somados aos 51 milhares que já partiram. O dia de ontem povoou o Brasil de outras 1374 cruzes – este simulacro sacrificial do corpo humano, braços abertos para a morte.

Mortes causadas por aquilo que é o elemento mais abundante na natureza: o ar. Aos 1374 brasileiros foi proibido o ato de inspirar e expirar. Em lugar do último e solitário suspiro, a desesperada luta por um último respiro.

Com eles morreram 1374 histórias de vida, abreviadas não importa a extensão do tempo: um dia, meses, muitos anos. Não importa: eles foram antes, perderam, lhes foi subtraída uma parcela de vida.

Tão fácil atribuir a uma impessoal e trágica epidemia este assassinato em massa! Mais do que o fado cruel da doença, pesa o fardo de viver em uma sociedade pobre – em vários sentidos – abandonada e desgovernada. O Brasil teve meses de antecipação para preparar-se adequadamente. Exemplos de outros países não faltaram. Sobrou a arrogância do negacionismo. Sobraram carnavais e festejos. Pesaram 2022, 2024, 2026, 2028…Anos que muitos não mais verão.

A maior parte da população veraneou, despreocupou-se e intrigou-se, no mais comezinho tugúrio aos mais ostentatórios palácios. Curtiu adoidada seu consumismo e sua ignorância, exilando experiências e tragédias alheias em troca do imaginário gigante adormecido e da mãe gentil. Antepôs a qualquer racionalidade os chavões de não temos terremotos e Deus é brasileiro. Viveu de fantasias reais e imaginárias em um país de tramoias e em um lodaçal de ostensiva, proclamada e orgulhosa ignorância.

Tal qual agressiva cigarra, deixou que as formigas continuassem seu trabalho: nem cantou, nem celebrou o verão. Sonolenta, colocou-se à mercê de quadrilhas de gafanhotos e hoje, em sua inércia, espera que as formigas a socorram. E morrem todas (ou quase todas): cigarras e formigas. Porque os gafanhotos em nuvens consomem o que compulsoriamente vai sendo abandonado pelo caminho.

Hoje é dia de São João. As quadrilhas de fantasia ficarão na virtualidade, enquanto as quadrilhas reais preparam mais mortos para o baile da Ilha Fiscal.

Uma sociedade com a maioria de seus cidadãos anestesiados, a sofrer a falta de shoppings, academias, salões de beleza, restaurantes e festas. Espertamente à espera que outros cumpram o que considera o dever de protegê-la.

Hoje o dia amanheceu em mim ainda noite. No céu sem nuvens, algumas estrelas retardatárias recomendavam a volta à cama confortável. Mas a seu desenho no espaço se sobrepunham 1374 cruzes na Terra. A elas se sobrepunha a dor de muitos mais milhares de amigos e familiares. Um mar de afetos agora sem corpo. Um mar de lágrimas agora sem resposta. Um infinito paredão de medo, angústias, solidão e desamparo a oprimir quem ficou nesta terra brasileira, calcinada do Amazonas ao Rio Grande do Sul, de ar rarefeito do Rio Grande ao Amazonas.

Esta terra brasileira, nanificada pelas servidões centenárias, contraída pelo temor e pela dor, silenciada à força por uma catástrofe minimizada. Nesta terra de nanicos, muitos deles inconsequentes, um dos piores sacrifícios é o de não se poder brincar o São João, é o de não poder voejar em torno da fogueira das vaidades, é o de correr riscos de pescar uma prenda e colher um esqueleto.

Quase tudo passará, pois o tempo a tudo aniquila. Passará a epidemia, mas a palavra escrita, que aqui registro, guardará um pouco da amedrontadora visão da bandeira com uma faixa de luto, enquanto diminuem rapidamente as forças de quem ainda luta nas frentes de combate contra as novas sete pragas. Não mais saúvas, mas pouca saúde. Não mais piratas caolhos, mas saqueadores de muitos olhos. Não mais lutas pela independência, mas a submissão e a subserviência. Não mais os clarins do “verde pendão da esperança”, mas o derrotismo da ignorância. Não mais a aquarela, mas as cinzas das queimadas e dos mortos. Não mais o céu de anil, mas o precipício do sofrimento.

Quanto tempo mais continuaremos inzoneiros? Responde aí, seu Ary!